Feitiço da Guerra

As mentes bem-comportadas, descansando na calma da aceitação, confrontam-se com os espíritos insubmissos, no desconforto da sua insubmissão. De um lado e do outro esgrimem-se armas, ligeiras e pesadas, mais ou menos convencionais. Em vários lugares, o confronto espraia-se por duelos, nas planícies imensas das consciências. Apoios chovem de parte a parte. Golpes e episódios de contra-informação sucedem-se e originam sequelas várias, nem sempre fáceis de evitar, uma vez que os campos, devidamente entrincheirados, se isolam do corpo e partem numa cruzada, em que apostam todos os trunfos.

Por Alfredo Soares-Ferreira

A guerra

Muito embora não tivesse havido uma declaração propriamente dita, para lhe sustentar alguma legitimidade, ela aí está e teme-se um alastramento, assim como uma espécie de castigo, para as duas partes, que teimam em sustentar e alargar o conflito. Mesmo que ela (a guerra) assuma uma espécie de operação especial, ficam a esperar-se, sem muita expectativa, os pronunciamentos tidos como habitais.

Das guerras conhecidas, que povoam o inconsciente de alguns, poderiam invocar-se, por exemplo, a das sondagens e das audiências, que induzem comportamentos e atitudes. Se existisse uma simbologia da guerra, ela poderia até ser vista como “Arte”. Sun Tzu assim pensou e falou, sobre “aquele que sabe quando deve ou não lutar”, bem como “aquele que sabe como adoptar a arte militar apropriada de acordo com a superioridade ou inferioridade de suas forças frente ao inimigo”.

Haverá hoje ainda motivos para falar em guerra de libertação? A primeira sensação diz-nos que sim, por haver demasiadas consciências oprimidas que representam a pior opressão do ser humano. Ainda que duvidemos se valerá a pena fazer uma guerra por isso, a verdade é que a aceitação da dominação pode configurar casos extremos de auto-repressão e de mutilação do pensamento. Algum dele já terá sido, entretanto, oportunamente privatizado e utilizado para lavagens sucessivas.

Mas há outras guerras. O Império contra-ataca e a Guerra das Estrelas está hoje disseminada, pelo menos num planeta conhecido. A formação guerreira está subjacente à propaganda generalizada, que é servida em doses regulares e bem proporcionadas.

Outras guerras. A que ficou conhecida como “guerra das rosas”, floresceu no século XV entre dois senhores, pois eram duas as flores rosa, em Iorque e em Lencastre.

Versão em bambu de Sun Tzu, “A Arte da Guerra”

As “guerras civilizadoras”, de que falava Thomas Mann, não teriam tido uma acção internacionalista, antes fazendo com que os nacionalismos florescessem um pouco por todo o lado. Ao seu tempo, uma asserção muito sensata produzida pelo homem que foi um dos intelectuais e pensadores mais firmes na oposição ao nazismo.

Mas há uma guerra que é bem “nossa”. O “Judeu” do século XVIII, que morreu cedo, sempre perseguido pela Inquisição, acabando torturado e executado, inventou Alecrim e Manjerona, que cuidadosamente travestiu, para produzir uma sátira mordaz à sociedade. Podia ter lugar hoje, esta “comédia de enganos”, com algum requinte modernista à mistura.

A paz não surte efeito

A paz não tem grande interesse. É uma espécie de atitude seminal, que parece ser inspirada em seres misóginos, desprovidos de razão, mesmo quando a têm. Dela falam sempre que podem e lhe dão espaço, muito embora a sua voz não tenha o mesmo eco dos que glorificam a guerra, mesmo sem saberem porquê. É uma fala esquisita, própria de criaturas inspiradas, mas a que ninguém, ou poucos, dão qualquer crédito. É uma outra espécie de inevitabilidade, mas ao contrário. É mais difícil de entender, porque fala sempre um tom abaixo, não tendo acompanhamento à altura. Nem sequer à medida. O Poeta avisa, “Tu não queres a paz que trago em mim/Sei também que a paz em ti não fica bem”.

O efeito que poderia surtir hoje é conhecido, nenhum.

A guerra tem um feitiço

Que até lhe fica bem. Que o digam os milhões e milhões que movimenta, num crescendo contínuo, numa fanática sede de Poder, das indústrias e consórcios que alimenta e que com ela são alimentados, numa espiral terrível. Não importa quantos nela morrem, parecem até serem mortes “necessárias”, para “renovar” a humanidade. O feitiço é de tal forma atraente que justifica todos os desmandos.

Diz-se, que, em tempo de guerra não se limpam armas. A limpeza, aqui entendida como imagem pacífica, afinal quem vai pensar nelas, sem ser em sentido figurado? Os melhores intérpretes da guerra são líderes tão fracos que a ela têm que recorrer, para que alguém dê por eles. Aí poderá residir a previsibilidade da guerra, uma ideia assustadoramente banal, mas porventura com uma certa dose de razoabilidade, na medida exacta da sua tendência natural.

Freud dizia que não se podem julgar todas as guerras com o mesmo critério. Algumas só teriam causado calamidades, outras, pelo contrário, terão contribuído para a transformação da violência em direito, ao estabelecerem entidades em cujo seio foi eliminada a possibilidade do uso da violência, solucionando-se os conflitos mediante uma nova ordem legal. E se o direito é o poder de uma comunidade, ele próprio se pode impor, na qualidade justificativa da sua existência legal.

Muito embora se saiba que a verdadeira motivação da guerra é de índole política e não propriamente da esfera individual, será possível descortinar-lhe algum feitiço na lógica freudiana: a luta constante entre duas pulsões, uma que impele a destruir e a matar e outra que tende a conservar e a unir (que ele designava de pulsão erótica), uma espécie de transfiguração teórica da antítese entre amor e ódio. Resta saber qual o peso relativo de cada uma.

E, entretanto, a exploração, sobre os corpos e sobre as mentes, continua a fazer o seu caminho. Será provavelmente a única guerra que não tem qualquer feitiço. Ou que ainda não foi descoberto, talvez porque os espíritos insubmissos ainda não tenham ganho, como se esperaria, a guerra.

Quando tal acontecer, a conversa vai ser outra.

(Na imagem principal, “War”, Francisco de Goya)

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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