Alfredo Soares-Ferreira *
Uma qualquer matemática imaginária parece determinar neste Ocidente um especial enlevo pela aceitação, por vezes tácita, de um normal que não se deve contrariar, sob pena de cancelamento imediato e consequente transporte para um limbo onde cabem todos os que reclamam, discordam, contestam, protestam, ou simplesmente se colocam em posição contrária. Particularmente, neste tempo de descanso consensual, a lassidão ocupa o lugar do pensamento crítico e tudo parece envolto numa nuvem de poeira aleivosa, que invade as mentes subjugadas dos cidadãos. Neste tempo vale-nos a presença, permanente e atenta, dos zeladores, aqueles que pensam por nós e orientam a nossa atenção para o que deve, na sua óptica, ser verbalizado ou não, analisado e discutido, debaixo de uma capa moralista e consequentemente eivada de uma mística, naturalmente propensa à contemplação. Sendo uma casta privilegiada e possuidora, uma tipologia de burocratas, cínicos e conservadores quanto baste, os zeladores têm um particular horror à dissidência e assim cultivam práticas muito assertivas (cada vez mais firmativas) em relação à divergência. Tudo o que sai da (sua) norma é decididamente separatista e deve ser combatido enquanto tal.
A alarvice imperial dos meios de comunicação social burgueses, sendo uma constante da vida, é, como diria Gedeão, “tão concreta e definida como outra coisa qualquer”. Claro que o Poeta falava do sonho, insinuando que os burocratas desconheciam o seu real valor e sentido. Os zeladores são isso mesmo, abominam a utopia e exercem a sua “acção” sob a capa de uma bandeira sem cor, porque ela (a cor) é a sua morte. O processo contemplativo encaixa numa atitude benevolente, podendo o bem português “deixa-andar” ser a sua divisa mais apropriada.
Uma obra de finais do século XIV, atribuída a um Autor anónimo inglês, com o significativo título “A Nuvem do Não-Saber“, contém um tratado sobre a contemplação e tem sido citada e até seguida por intelectuais e filósofos, pela sua profundidade de pensamento e pela estética da linguagem. Supõe uma nuvem que, segundo o Autor, “se encontra em cima, entre ti e o teu Deus” e todas as coisas “se devem ocultar sob a nuvem do esquecimento”.
Em nome do Império do Bem, cuja legitimidade vem do coração, negam-se direitos básicos do cidadão
Para o historiador e professor universitário José Mattoso, que foi monge no Mosteiro de São Bento de Singeverga, esta obra integra “um dos mais belos textos místicos de todos os tempos”. Nela se diz, em prólogo, quem não a deve ler, sejam os “tagarelas carnais, os bajuladores e os detractores de si mesmos ou dos outros, os mexeriqueiros, os linguareiros e os que espalham boatos...”, ou mesmo ainda os “letrados ou ignorantes, que não passem de curiosos”. A excepção deve ser feita àqueles “que, apesar de serem activos na forma de vida exterior, são tocados no seu íntimo pelas moções secretas do Espírito de Deus, insondável nos seus juízos”. A obra tem quase setecentos anos e consagra a “contemplação”, na mística própria da época. E sobre ela se diz que nem sempre exige esforço, “Quando tiveres devoção, tornar-se-á repousante e facílimo o que dantes era muito duro, e executá-lo-ás com pouco esforço ou até sem esforço nenhum. É que por vezes Deus chegará a fazer todo o trabalho sozinho…”. Adverte, porém, o Autor que tal apenas acontecerá quando aprouver ao deus e ainda que o “devoto” sentir-se-á feliz quando o deixar agir por sua conta. Sete séculos depois, os zeladores estimulam a contemplação e pensarão quiçá que ficaremos felizes por tomarem conta de nós e dos nossos pensamentos.
Nessa eventualidade, deveremos esquecer, por exemplo, que o grupo de neonazis “1143” fundou mais de vinte grupos regionais e que andam a espalhar “notícias” falsas, que ameaçam imigrantes na rua e que se dizem prontos para criar um exército paramilitar, conforme nos dá conta um artigo do JN de 12 deste mês. Algum zelador de serviço irá decerto tratar do assunto, relativizando o suficiente para menorizar a notícia e seguir em frente, como se nada tivesse acontecido.
Os zeladores não hesitarão em nos confinar de novo, se necessário for. Basta para tal que invoquem um qualquer perigo, que pode ser precisamente um ataque cerrado às posições dominantes. O exemplo da Venezuela é paradigmático, o que conta para eles é a negação dos factos e a deturpação da realidade, mesmo que tenham para tal de inventar “vencedores”, uma reedição de “guaidós” passados e já esquecidos, porque não têm qualquer sustentação. A forma como actuam, a sua determinação militante, mesmo que contaminada pelo fenómeno neoliberal da estupidez quântica, é orientada para deixar o cidadão num estado de letargia permanente, propício à contemplação. E daí à submissão é um passo muito curto. O ensaísta e romancista francês Philippe Muray descreve bem a contemplação suave do capitalismo actual, na sua fase neoliberal e na sua faceta do espectáculo festivaleiro e estupidificante. Na sua obra “After History”, o Autor afirma: “A festivização globalizada parece ser o próprio trabalho de nosso tempo. No mundo hiperfestivo, o partido não está mais em oposição ou em contradição com a vida quotidiana; torna-se a própria vida quotidiana”. Em nome do Império do Bem, cuja legitimidade vem do coração, negam-se direitos básicos do cidadão, como a liberdade de expressão, não da forma bruta e cruel do passado, mas, como diz Muray, com um “sorriso no rosto e um ar festivo”.
Um outro Autor anónimo, este actual, usou a ironia, uma expressão superior do pensamento, ao afirmar “Cansados de serem lineares ou quadrados, os quilómetros abalançaram-se a outra dimensão”. Sejamos então como eles, possivelmente uma forma sistemática de contrariar a suave contemplação.
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