A imagem é uma traição

Alfredo Soares-Ferreira *

A Traição das Imagens” será porventura a obra icónica do Surrealismo. A obra de René Magritte mostra um cachimbo com a inscrição “Ceci n’est pas une pipe”. Na verdade, a explicação (se é que há explicação para uma obra de arte) é simples, o que o quadro mostra é uma representação de um cachimbo e não o objecto-cachimbo e destina-se a questionar-nos sobre a realidade e as suas representações. Ao perpassar nos ventos da História a manifestação de algo que vai para além do real, recuamos um século, mais exactamente a Março de 1924, ano da publicação do primeiro Manifesto Surrealista, da autoria do escritor francês André Breton. O Movimento pretendia, de certa forma, romper com o racionalismo clássico e lançar bases de contestação, desde a arte à política, passando por todas as manifestações sociais inerentes à época de transição que se seguiu à primeira Guerra Mundial. A Breton, juntar-se-iam nomes muito conhecidos e creditados, como Dali, Miró, Frida Kahlo, Max Ernst e o já citado Magritte. O movimento surrealista enquadra-se na década dos anos vinte do século passado. No ano de 1924, é aprovada a Constituição que institui a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Nascem duas novas Repúblicas, a Albânia e a República Popular da Mongólia. Os fascistas de Mussolini vencem as Eleições Legislativas na Itália, através do movimento que havia sido formado em 1919. Foi ainda o ano das eleições federais na Alemanha, após a dissolução do Reichstag, no mês de Outubro e Hitler foi preso por ter liderado a tentativa de golpe de estado em Munique, no ano anterior. É o ano da morte de Lenine.

A imagem, hoje largamente “explorada” e “vítima” das mais bárbaras agressões era, para Platão, em primeiro lugar, a sombra e o reflexo dos corpos opacos, polidos e brilhantes. A consideração da imagem como mediação implica não só a imagem (do) objecto, mas também a imagem mental, como produto de várias tipologias de imagem, afinal o que o outro pensa ou, qual a imagem que tem de nós. As imagens surrealistas acumulam um desprezo pela sociedade da época e proclamam, de forma indirecta ou mesmo directa, a sua destruição necessária e a sua substituição por uma sociedade de tipo novo. O que viria a significar, seis anos depois, no novo Manifesto, a adesão à designada Arte Revolucionária, à qual iriam juntar-se nomes da política como Leon Trotsky que assina, juntamente com Breton, o Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente, escrito em Julho de 1938 e que apela à construção da Federação Internacional da Arte Revolucionária e Independente (FIARI), pela independência da arte e pela revolução socialista mundial. Já em 1929 Walter Benjamin haveria de publicar um ensaio, no qual afirmava que os surrealistas eram os únicos que conseguiram compreender as palavras de ordem do Manifesto Comunista de 1848. Benjamin afirmou ainda que era absolutamente necessário direccionar todas as energias para a Revolução, transformando o desencantamento e a nostalgia na força para a luta revolucionária pela transformação das condições materiais de vida.

Deverá assinalar-se a profunda contradição entre uma Europa aprisionada pelo ascenso fascista e a expressão revolucionária centrada na luta social e numa expressão artística, suportada pelo papel contestatário do movimento surrealista, que nunca pactuou com a “situação” e que produziu obras que se mantêm vivas após um século. O caso do livro “Lá em baixo”, de uma das expoentes do movimento surrealista, que foi a artista visual e escritora inglesa Leonora Carrington, é deveras significativo, pelo relato que faz da sua fuga da França ocupada pelo nazismo, para a Espanha, onde é internada num hospício. Nesta obra, a Autora atesta a esperança e a força revolucionária das quais o surrealismo nunca abriu mão.

A realidade que nos é apresentada hoje em dia é uma barreira ao conhecimento e à utopia. É a imagem da lógica mesquinha do espírito mercantilista. É a imagem de administrações e governos, por essa Europa dentro, com o nosso País naturalmente incluído, completamente afastados da realidade e capturados por ideologias de direita e extrema-direita, profundamente conservadores e, muitas vezes, perfeitamente fascizantes, ou mesmo, fascistas. É a imagem mais perfeita da traição ao cidadão.

Se cavarmos o protesto contra a racionalidade limitada, estaremos provavelmente a ser eminentemente subversivos, como afirma o sociólogo brasileiro Michael Löwy, na sua obra de 2002, “A estrela da manhã: surrealismo e marxismo”, ao proclamar “a aspiração utópica e revolucionária de mudar a vida.”

Se é lamentável ser traído por uma imagem, o que se poderá dizer da imagem pungente da traição? Podemos equacionar a hipótese de a imagem trair, ou uma outra que será a da prevalência da imagem traída. Quem nos trai e desrespeita terá de nós o devido desprezo. Se conhecemos bem a imagem da traição, decerto nenhum respeito teremos por aqueles que traem a nossa confiança, se neles depositamos alguma. Nesta categoria encaixam de forma perfeita os burgueses de Brel, “Les bourgeois c’est comme les cochons/Plus ça devient vieux plus ça devient bête”. Na sua obra-canção, Brel explicita o tratamento a que os sujeitavam os burocratas-burgueses à saída do bar. Quando os que se dizem nossos representantes nos traem a todo o momento, desafiando a nossa paciência e boa-vontade, merecem ter o mesmo tratamento correctivo. Basta ler o Poema até ao fim.

(Imagens: reprodução de “Ceci n’est pas une pipe”, de Magritte e edição de “Beijo de Judas”, de Giotto.)

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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