A estratégia reversa de Kissinger de Donald Trump

Por Vijay Prashad/Globetrotter *

Enquanto [o secretário de Defesa de Trump, Pete] Hegseth estava em Bruxelas, Trump estava em Washington, DC, com seu aliado próximo, Elon Musk. Ambos estão em uma onda de cortes nos gastos do governo. Nas últimas cinco décadas, o governo dos EUA já encolheu, particularmente quando se trata de provisão de bem-estar social. O que resta são áreas como a indústria de armas que foram zelosamente guardadas por grandes corporações. Sempre pareceu que essa indústria era inviolável e que cortes nos gastos militares nos Estados Unidos seriam impossíveis de sustentar. Mas a indústria de armas pode ficar tranquila (exceto a Lockheed Martin, que pode perder seu subsídio para o jato de combate F-35); Musk e sua equipe não vão cortar contratos militares, mas irão atrás de funcionários militares e civis. Durante sua audiência de confirmação, Hegseth disse aos senadores que durante a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos tinham sete generais de quatro estrelas, e agora tem quarenta e quatro deles. “Há uma relação inversa entre o tamanho das equipes e a vitória no campo de batalha. Não precisamos de mais burocracia no topo. Precisamos de mais combatentes de guerra fortalecidos na base’. Ele disse que a ‘gordura pode ser cortada, então [os militares dos EUA] podem ir em direção à letalidade’.

Há uma interpretação fundamentalmente errada desses movimentos pelo governo Trump. Estes são vistos por vezes como o fracasso idiossincrático de um presidente de extrema direita que está comprometido em colocar a “América em Primeiro Lugar” e, portanto, não está disposto a buscar guerras caras que não sejam do seu interesse. Mas essa é uma avaliação míope e errónea do telefonema de Trump com Putin sobre a Ucrânia e sua abordagem aos militares dos EUA. Em vez de ver isso como manobras isolacionistas, é importante entender que Trump está tentando buscar uma Estratégia Kissinger Reversa, ou seja, fazer amizade com a Rússia para isolar a China.

Trump entende que a Rússia não é uma ameaça existencial para os Estados Unidos. O governo dos EUA não teme as vendas de energia russa para a Europa, já que não há pretensão de que essas vendas de commodities primárias irão minar o controle geral dos EUA sobre a economia global. No entanto, o rápido desenvolvimento da tecnologia e da ciência da China, bem como de novas forças produtivas, representam genuinamente uma ameaça à dominação dos EUA sobre sectores-chave da economia global. É a “ameaça” percebida da China para os Estados Unidos que motiva a abordagem de Trump para alianças e inimigos.

A reversão de Trump: faça amizade com a Rússia para isolar a China

Mesmo em seu primeiro mandato, Trump buscou fazer amizade com a Rússia para isolar a China e subordinar a Europa. Essa reversão da estratégia de Kissinger não é progressiva, mas similarmente reacionária e perigosa. O objetivo unificador é garantir a supremacia dos Estados Unidos com a mesma estratégia de divisão, mas com os atores invertidos. Trump foi então acusado de ser um beneficiário da interferência russa.

O que os Estados Unidos estão a fazer agora é tentar romper o relacionamento estabelecido entre China e Rússia desde 2007, quando Putin fez sua ruptura oficial com os Estados Unidos na 43ª Conferência de Segurança de Munique. A boa cooperação entre China e Rússia avançou rapidamente, e os dois países têm um acordo de segurança subjacente à transferência de bens e serviços em rublos e renminbi. Romper esse relacionamento não será fácil, mas agora é a estratégia que Trump decidiu tentar executar.

Vale lembrar a avaliação de Kissinger sobre a liderança chinesa em 1971: ‘O interesse deles é 100% político… Lembre-se, esses são homens de pureza ideológica. [Zhou En-lai] se juntou ao Partido Comunista na França em 1920, muito antes de haver um Partido Comunista Chinês. Esta geração não lutou por 50 anos e foi na Longa Marcha pelo comércio’. Essa visão captura não apenas Zhou En-lai e Mao Zedong, mas também Vladimir Putin e Xi Jinping. Eles também foram fortalecidos em uma luta contra os Estados Unidos ao longo da última década. É improvável que algumas bugigangas atraiam Putin a adotar a estratégia reversa de Kissinger de Trump.

Estratégia de Kissinger: Faça amizade com a China para isolar a Rússia

Henry Kissinger (1923–2023) foi um dos burocratas de política externa dos EUA mais influentes da história. Durante a presidência de Richard Nixon, de 1969 a 1974, Kissinger essencialmente administrou a política externa dos Estados Unidos. Tanto Nixon quanto Kissinger acompanharam de perto a disputa entre a União Soviética e a República Popular da China (RPC). Quando Nixon se tornou presidente, a disputa de fronteira URSS-RPC em torno da Ilha Zhenbao quase se transformou em um potencial ataque nuclear soviético contra Pequim. Kissinger reconheceu que essa disputa era de grande valor para os Estados Unidos, pois impedia os dois grandes países eurasianos de construir uma união integral contra a aliança atlântica encapsulada pela OTAN. Se a Rússia e a China tivessem se unido, escreveu Kissinger, elas seriam capazes de minar a fundação do poder ocidental no mundo. Impedir tal aliança era essencial, e usar a disputa sino-soviética para construir uma profunda cunha entre os dois países estava no cerne da política de Kissinger. A reaproximação com a China também permitiu que os EUA tentassem fechar a linha de fornecimento logístico para as forças de libertação nacional vietnamitas em sua guerra contra a agressão norte-americana.

Foi por essa razão que Kissinger iniciou conversas secretas através do Paquistão com o governo chinês em 1970, fez uma viagem secreta a Pequim em 1971 e, assim, abriu a porta para Nixon visitar a China no ano seguinte. Em seu relatório verbal à equipe da Casa Branca após sua visita à China, Kissinger fez o seguinte comentário importante: “Os chineses eram pessoas extremamente sérias. Eles não nos desejam bem. Não temos ilusões quanto a isso. Mas em termos de nossa situação geral, com a pressão soviética e com a situação no Sudeste Asiático, é do nosso interesse trazer os chineses”. A visita histórica de Nixon à China foi inteiramente motivada pelos interesses dos EUA de dividir a Rússia e a China para que os EUA pudessem estabelecer seu poder no continente asiático.

Muito depois do colapso da URSS, Kissinger continuou a defender que os Estados Unidos deveriam fazer amizade com a China, isolar a Rússia e subordinar a Europa para continuar seu domínio de longo prazo. Esse é o argumento subjacente no épico de 600 páginas de Kissinger, On China, publicado em 2011.

Com a queda da URSS, o establishment dos Estados Unidos desenvolveu uma estratégia para fazer amizade com a Rússia e a China, mas mais ainda com a Rússia. Acreditava-se entre a elite da política externa que a subordinação da Rússia aos Estados Unidos — sob a presidência de Boris Yeltsin de 1991 a 1999 — era total e que os russos se tornariam um actor secundário no continente eurasiano. A entrada da Rússia no G7 (que então se tornou o G8) em 1998 foi o auge dessa subserviência. O retorno do cristianismo em público na Rússia e a promoção da cultura russa voltada para a Europa sugeriram que a Rússia havia abraçado sua herança ocidental. Parecia que havia se afastado tanto da soberania quanto da Ásia e, portanto, da China. Em 1993, o presidente dos EUA Bill Clinton ligou para Yeltsin e disse: “Quero que você saiba que estamos nisso com você por um longo tempo”.

Uma seção de extrema direita do establishment dos EUA identificou duas tendências no final dos anos 2000. Primeiro, o desenvolvimento tecnológico das forças produtivas da China ameaçou seriamente a dominação da propriedade intelectual por empresas dos EUA. Segundo, o novo nacionalismo da Rússia foi baseado tanto na soberania (identificada pelo surgimento dos partidos patrióticos de Putin) quanto na supremacia branca e na ortodoxia russa (como aquela ancorada pelas teorias de Aleksandr Dugin). Há um bloco inteiro na extrema direita dos EUA que vê no nacionalismo patriótico russo sua própria ideologia, e vê no comunismo chinês seu adversário.

* Vijay Prashad é historiador, autor, jornalista, comentador político e intelectual marxista indiano, radicado nos Estados Unidos. É o principal correspondente da agência Globetrotter e co-autor (com Noam Chomsky) do livro “The Withdrawal: Iraq, Libya, Afghanistan, and the Fragility of U.S. Power.” (Fotos: Wikicommons)

[Nota do editor: O artigo foi editado de forma a ser mais conciso para a leitura online. Desta forma, foi suprimido o primeiro parágrafo, sem impacto para a compreensão, e invertida a ordem dos parágrafos que detalham o contexto histórico de Kissinger.]

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