A conjuntura do sacrifício

Alfredo Soares-Ferreira *

O que se diz sobre a capacidade de sacrifício de um governo, é normalmente assumido como sinal de um certo constrangimento de quem exerce funções públicas e está disposto a aplicar-se uma espécie de penitência. E essa capacidade varia, na medida exacta da tipologia de governo, circunstância a que não será decerto alheia a conjuntura, um termo que entrou no léxico político para, em termos de análise, abordar os processos políticos e os seus desenvolvimentos.

Hoje são os comentadores, que se sobrepõem aos governantes, para fazer a “verdadeira” política. São uma casta imensa de burocratas que exercem o poder de uma forma subtil, por vezes até, basbaque. A eles não se aplica a capacidade de sacrifício, dado que trabalham, com convicção, no circo da propaganda e do espectáculo. O que nos transmitem, por exemplo sobre a constituição de um novo governo, é que ele será, “forte” (ou “fraco”), “político”, “de coragem”, “de compromisso”, ou outras expressões, ao arrepio das classificações clássicas. O que será, por exemplo, um governo “forte”, como dizem deste, que acaba de tomar posse? Estará unido, para fazer face à dita conjuntura, constituído por pessoas “com peso político” e dedicadas à causa pública? A pobreza e a mediocridade da linguagem utilizada por estes intérpretes está, na verdade, no grau zero da credibilidade.

O historiador francês Fernand Braudel, investigador da História recente, introduziu uma análise de tipo novo, resumida nos conceitos de longa duração, um movimento dialéctico entre estruturas, conjunturas e quotidiano “normal”. Assim, a História é configurada como uma relação permanente e constante com os movimentos sociais e as suas representações. Se recuperarmos as suas teses, ou melhor, as teses da Escola dos Annales, movimento fundado por Marc Bloch e Lucien Febvre, encontraremos alguma racionalidade, necessária ao século em que vivemos e um conhecimento mais fino do que se está a passar, nomeadamente no que concerne às conjunturas, como inflexões cíclicas que afectam as estruturas e determinam de certa forma o seu desgaste.

Há que entrar em linha de conta com os “reais interesses do País”. Esta é uma asserção muito utilizada pelos comentadores. Que é assumida também pelos governantes. A Direita gosta particularmente de falar assim. Mas o que são os tais interesses? Na verdade, existem interesses que não são coincidentes, conforme reportamos a uma determinada classe. São até contraditórios, uma vez que não se podem dissociar dos meios de produção e da sua apropriação. Como se pode falar de “reais interesses” sem especificar ou distinguir quais? Serão os do banqueiro, que vê disparem os lucros da sua instituição, com a obrigatória tomada de posse dos lucros e dividendos ou os do trabalhador precário que nunca sabe se pode pagar a renda da casa, ou sequer se existe dinheiro para o jantar?

O sacrifício pode ainda ser analisado, na perspectiva bíblica, uma oferenda aos deuses, qual imolação num qualquer altar apropriado. Nesta versão, que pode até enquadrar um presente envenenado, estará porventura a acção de um poder submetido à ditadura dos mercados, mas que se considera democrático, pela simples razão que está sempre do lado certo da História, como parece ser o caso das “democracias” ocidentais, assim consideradas porque permitem eleições e autorizam a massa amorfa de votantes a exercer esse direito de quando em vez.

Imagens: Presidência da RP

É nesta conjuntura de “sacrifício” que deve ser analisada a composição do novo Governo. Na verdade, colocar nos Negócios Estrangeiros, um indivíduo que nega a realidade da chacina permanente e do extermínio em Israel, é um insulto à inteligência. Propor para Ministro da Defesa um coleccionador de armas, é uma verdadeira provocação. Entretanto, alguém está atento. O Jornal AbrilAbril chama a atenção de um pormenor interessante: o ex-ministro da Economia, Pires de Lima, que abriu a renegociação das PPP rodoviárias e as negociações com a Brisa, tornou-se presidente daquela empresa, logo a seguir e hoje, com o novo Governo da Direita, é reconduzido nas suas funções.

O Poder fala para si e para dentro. A tomada do poder aconteceu na verdade por força de uma imposição judicial, qual veredicto à revelia, que lhe abriu as portas. Talvez nem estivessem à espera desta benesse, uma espécie de cruzada que os obrigou a mobilizarem-se à pressa. Pensar que estes “governantes” serão capazes de dialogar com os cidadãos de uma forma aberta e empenhada é o mesmo que esperar a quadratura do círculo, montada num espectáculo negacionista. Pensar que estão a fazer um sacrifício ao aceitar cargos e certamente algumas prebendas, por amor à Pátria, é o mesmo que acreditar em gambozinos, ou, como agora se diz, em unicórnios. A Terra irá girar mais depressa, ao contrário da premissa científica, da qual o degelo é o responsável. Entretanto, comentadores e “governantes” andarão por aí, primeiro em “estado de graça” e depois, esperando alguma graça divina, na qual alguns acreditarão mesmo.

Não lhes ficará mal alguma discrição, poderão perder o pé na primeira esquina e depois será vê-los a rodopiar à volta do chefe, ou a oferecer-se ao tal “pastor” de um rebanho que leva hoje mais de um milhão de seguidores. Sem qualquer sacrifício, pois o Poder apetece, mesmo ao arrepio da conjuntura. Há quem, entretanto, passe neste momento por sacrifícios reais e quase ninguém esteja a reparar.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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