Alfredo Soares-Ferreira *
Em tempo de dias claros, falamos da escuridão no mundo. Parece um paradoxo, um atentado à lógica clara. Será, contudo, apenas um contrabalanço, a retórica necessária para acordar mentes que, em descanso estival, pousam suavemente na tristeza de um escuro que teima em manter-se apesar dos arrufos de luz e de sol, que parecem guardados numa caixa negra, impedidos de circular nas mentes “ocupadas”. Não sendo propriamente uma época de trevas o certo é que, seja qual for a direcção para onde estivermos virados, sabemos sempre das atrocidades de que o ser humano é capaz, sendo o exemplo mais recente do genocídio israelita, uma eloquente prova. A asserção de que a escuridão do mundo é omnipresente é defendida pelo documentarista francês Nicolas Philibert que, na sua obra de 2023, “Sur L’Adamant”, segue pacientes, médicos e cuidadores do Adamant, um centro psiquiátrico que funciona num edifício em madeira, implantado sobre as águas do rio Sena, em Paris. O cinema é aliás um campo proficiente para mostrar algumas zonas cinzentas, onde predomina a escuridão. Recordamos o Taxi Driver de Martin Scorsese e as distorções mentais de Travis, um frustrado e alienado que caminhava pelas ruas de Nova York pensando que conseguia eliminar a violência. Um outro mais recente, realizado este ano pela cineasta catalã Clara Roquet, com o título “Libertad”, remete-nos para a passagem da adolescência à idade adulta e baseia-se na estória de duas personagens de classes sociais diferentes, que o El País classifica como “uma explosão de descobertas e rebeldia” e a que o jornal Público confere o significativo título de capa “Cenas da luta de classes num Verão azul”.
A escuridão parece ser opção para o continente europeu, onde nasceu o Iluminismo e onde os ideais da Revolução Francesa promoveram um despertar para a luz, aprofundados e enquadrados na defesa da luta dos trabalhadores de todo o mundo, na Revolução Russa de 1917. O mesmo continente que hoje opta pelo negacionismo climático, pelo seguidismo à hipocrisia norte-americana em relação a Israel e ainda pela infeliz e desastrosa guerra total contra a Rússia. Porém, o negacionismo não é apenas climático. Negam-se ideologias e realidades emergentes, nega-se o nazismo e o holocausto (que dizem nunca ter existido) e decreta-se o “…é apenas uma opinião”. Ao não querer ver a realidade nega-se a luta de classes, instituindo-se figuras como “o empreendedor” e “o empregador”, onde o Capital é apresentado como salvador do mundo e onde a sociedade que aí vem é servida em bandeja por vendedores e burocratas sem escrúpulos. Fica assim aos poucos um mundo “mais escuro”, no sentido em que a luz deixa de ser natural e passa para um segundo plano, cada vez mais inclinado. As guerras culturais vão ajudando, nomeadamente quando se baseiam em representações do passado que privilegiam feitos e acções do homem branco, tornando irrelevantes as contribuição das mulheres e de outras etnias, como acontece nos Estados Unidos da América e que “justificam” a violência policial sobre os negros e outros indígenas e, naturalmente, sobre os trabalhadores e as suas organizações. Um exemplo bem significativo de “teorização” das situações descritas é o livro do sociólogo americano James Davison Hunter, “Culture Wars: The Strugle To Define America”. Datada de 1991, a obra estabelece a conhecida tese de “guerra cultural”, que remonta originalmente aos anos vinte do século passado. A “guerra” em questão trata, de forma óbvia, a distorção da maioria das questões sociais, transportando para o campo individual a responsabilização do fracasso das políticas, pretendendo a reeducação da sociedade pela censura. Um comentário interessante sobre a matéria é feito pelo professor de Filosofia norte-americano Ben Burgis, ao afirmar que precisamos mais de luta de classes do que de uma guerra de culturas. Na verdade, importa-nos pouco a luta sobre comportamento individual, sendo mais correcto privilegiar um determinado posicionamento político sobre as questões institucionais. O exemplo mais claro de como se pode escurecer será possivelmente o do movimento woke que, segundo a filósofa e ensaísta norte-americana Susan Neiman, foi erguido nos campus universitários pelos estudantes desencantados da era Obama e que serve para promover uma manifestação para a reescrita de clássicos da literatura infantil e romances, chegando ao ponto de alterar designações e classificações conhecidas, no que é definitivamente o cúmulo do ridículo institucionalizado e, claramente, mais um contributo para o “escurecimento” do mundo.
Voltando ao cinema, destacamos um filme deste ano, “A Sala dos Professores”, do realizador alemão de origem turca İlker Çatak, com cinco Prémios do Cinema Alemão e que integrou o top 5 dos Melhores Filmes Internacionais de 2023 do National Board of Review. Baseado numa estória da investigação sobre pequenos roubos, passa-se numa escola alemã e explora as dinâmicas de poder entre professor, aluno e encarregado de educação, sempre na fronteira entre a razão moral e o perigo iminente. O Autor, que foi expulso da escola por ter chamado nazi a um professor, dedica a sua obra aos professores e aos vários colegas de profissão que, segundo ele, também são professores, acaba por dar um tiro no escuro, desafiando o tradicionalismo e os “bons costumes”, iluminando mentes provavelmente adormecidas.
Um bom exemplo de escuridão é dado esta semana pela nomeação para comissária europeia de uma das figuras marcantes da desgraça do nosso País na era da troika e do desprezo pelos trabalhadores em geral e pelos aposentados em particular, no maior retrocesso civilizacional desse século. O símbolo da escuridão assenta-lhe como uma luva e, por esse motivo, a nomeação é mais que merecida.
(Fotos: Das Lehrerzimmer, divulgação; Woke movement in US, Wikimedia)
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