O realismo ofensivo e as eleições nos EUA

Por Alfredo Soares-Ferreira *

Se a realidade nos está a incomodar e caso não consigamos descortinar uma saída, na ofensiva com que somos brindados a toda a hora, a notícia que trago é que a coisa não vai melhorar. Abundam os pensamentos retrópicos, típicos de uma época que se caracteriza por uma fantasia voltada para o passado saudosista, um apego reaccionário a valores e ideias que não têm lugar num mundo em evolução. Não é aparentemente possível o diálogo com o idealista retrópico uma vez que este tende sempre a desconsiderar tudo o que se relacione com avanço social, ou seja, com qualquer utopia. O sociólogo e filósofo polaco Zygmunt Bauman explica bem este fenómeno na sua obra póstuma “Retrotopia”, editada em 2017. Bauman afirma que a retropia assenta na desconfiança generalizada e terá sido causada pelo “anúncio” do fim do pensamento utópico e pelo desencanto dos cidadãos perante os sucessivos fracassos e promessas do regime capitalista.

A realidade é ofensiva. Tal procura demonstrar o professor de ciência política norte-americano John Mearsheimer, quando propõe um tipo de realismo que se opõe, de forma natural, a um outro realismo, dito defensivo. O realismo ofensivo é um realismo atávico, amplamente descrito na sua obra de eleição “The Tragedy of Great Power Politics”, em português, “A Tragédia da Política das Grandes Potências”, do ano 2001. O Autor afirma textualmente que “A ideologia não importa, o que importa é o equilíbrio da força“. Esta lógica estaria na base da sua oposição à participação americana na segunda guerra do Golfo de 2003. Mearsheimer pressupõe uma relação necessária entre agressividade e sobrevivência, sendo que esta será o objectivo principal das grandes potências. Outras premissas, que sustentam o realismo ofensivo, serão que as grandes potências possuem alguma capacidade militar ofensiva e que os estados nunca podem ter certezas sobre as intenções dos outros estados e ainda que, segundo o Autor, o sistema internacional é anárquico. Em resumo, a tese sustenta que os estados estão dispostos à competição e ao conflito porque têm interesses próprios, maximizam o poder e têm medo dos outros estados, sendo obrigados a comportar-se daquela forma porque isso favorece a sua sobrevivência no sistema internacional.

Uma ideia réproba será certamente a que continua a orientar-se pela tese da superioridade moral da chamada “democracia americana”. A libertação dessa ideia é fundamental, quer para os americanos em particular, quer para o designado Ocidente, no geral, na consideração de uma geopolítica diversa da que tem orientado as decisões nas últimas décadas. Na verdade, os EUA não são, nem uma democracia, nem um estado propriamente dito, mas sim uma federação de interesses privados, organizados segundo uma perspectiva de ganho e lucro fácil e “vantagens competitivas” de ordem vária, que começam no pequeno favor e vão ao topo mais alto de indivíduos e aparelhos corruptos e corruptores. A incapacidade de resposta, uma atitude deliberada do capitalismo, promoveu a descrença num futuro melhor, criando uma atmosfera de incerteza e impotência, que determina, em certa medida, a tentativa de preservação dos mínimos de um putativo estado social, como se fosse o máximo possível de atingir. O capitalismo mantém, de forma ostensiva, milhares de milhões de cidadãos em situação de exploração brutal e opressão em todo o mundo. Particularmente nos EUA, existem neste momento quase 40 milhões de pobres, 12,4% da população (eram 7,8% em 2021), com a pobreza entre as crianças a duplicar, passando de 5,2% para 12,4%, com dados de Setembro de 2023, acrescendo que não existe qualquer assistência em serviços públicos de saúde. Entretanto, o País gastou em defesa, no ano 2023, 916 mil milhões de dólares, mantendo uma dívida pública de quase 35 triliões de dólares, sendo neste momento o país mais endividado do mundo, com uma percentagem de 123,8% do PIB.

Mulheres a trabalhar na fábrica de munições de Chilwel, 1917.

O fantasma de uma bolha, ou “blob”, assola a vivência social e política nos EUA, traduzindo de certa forma um consenso bipartidário sobre a necessidade de uma robusta presença militar dos Estados Unidos em todo o mundo. Este termo, passado a conceito, surgiu de um perfil da New York Times Magazine de Ben Rhodes, ex-conselheiro adjunto de segurança nacional dos Estados Unidos na administração Obama e que se tornaria comentador político, situação usual na actualidade. A bolha permanece e manifesta-se num circuito fechado, através de painéis, conferências e discursos académicos, administrados pelos mesmos patrocinadores, os donos da palavra e da propaganda, sempre oriundos do mesmo sítio, onde hoje reina um “democrata” ou “republicano”, não importando rigorosamente nada a “escolha” do cidadão.

Na verdade, a classificação de realismo ofensivo parece encaixar perfeitamente na realidade actual. O estado social parece ter sido substituído pela ideia de estado policial, tais são os sintomas de doença social que o capitalismo sustenta na sua acção predadora, sendo obrigado a recorrer permanente e sistematicamente à força dos seus aparelhos policiais, para manter uma ordem social que é o sinal mais evidente do seu fracasso. O exemplo dos EUA é apenas uma prova de como é apresentada a suposta polarização entre duas facções da burguesia dominante, gerindo interesses e expectativas, sejam elas voltadas para o armamentismo, para negócios imobiliários ou especulativos, ou para outro interesse qualquer. Qualquer uma das facções ignora os trabalhadores, embora uma delas procure dar algumas respostas para solucionar pequenos problemas, para que a situação se mantenha, ou seja, para “segurar” o sistema político e económico dominante.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

1 Comment on "O realismo ofensivo e as eleições nos EUA"

  1. (…) A bolha permanece e manifesta-se num circuito fechado, através de painéis, conferências e discursos académicos, administrados pelos mesmos patrocinadores, os donos da palavra e da propaganda, sempre oriundos do mesmo sítio, onde hoje reina um “democrata” ou “republicano”, não importando rigorosamente nada a “escolha” do cidadão.
    (…).
    Bem observado pelo autor.

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