O Estado violento

Alfredo Soares-Ferreira *

Assistimos nos dias que correm a uma certa institucionalização da violência, por diversos meios, pelo medo, pela tentativa da eliminação da diferença e pela banalização da vida humana. Existe violência na própria organização dos Estados, configurando um ataque aos direitos humanos, não se vislumbrando qualquer avanço que, no mínimo, possa significar uma atenção especial à protecção do cidadão. O controle ideológico e social do Estado, destinado a perpetuar os conflitos e a consequente violência em relação ao designado “outro”, parece instituir um contexto violento permanente de que, na maior parte das vezes, não damos conta, nem lhe entendemos os contornos, pela subtileza da sua actuação.

O que hoje é perigoso e pode tornar-se violento é manifestamente a acção dos estados, em favor de uma “segurança”, que mais não é que a paranoia propagandística que a pretende associar, como no nosso País está a acontecer, à imigração, ao aumento do número de imigrantes, ou especificamente à sua origem, cor de pele ou estatuto social.

Só mesmo com uma dose muito forte de paciência e tolerância, se poderão admitir afirmações piedosas como os os cidadãos confiam na polícia”, ou, “os cidadãos devem confiar na Justiça”. Na verdade, parece que é precisamente o contrário que se verifica. Caso existisse alguma confiança, não teriam qualquer justificação os acontecimentos que se seguiram ao assassinato de Odair Moniz, às mãos de um polícia. Outra questão que se coloca, neste caso em concreto, é como pode haver confiança numa Polícia que mente à luz dos factos e que, mesmo após as evidências, persiste no erro e tenta distorcer a realidade, numa clara prova de incompetência e de incapacidade em entender, pelo menos, a asserção popular “violência gera violência”. Uma outra evidência, difícil de desmontar, é a que deriva da sequência natural dos acontecimentos. Os tumultos seguem-se à morte de um cidadão, ou seja, caso tal não tivesse acontecido, não haveria lugar a distúrbios, de que resultou, pelo menos, um ferido grave. Ou ainda uma outra evidência, que tem a ver com a sistemática e desastrada actuação da Polícia em bairros e zonas sensíveis das cidades, particularmente Lisboa e Porto. Há sempre uma violência latente na acção policial, que parece configurar discriminação e até racismo. E não é apenas em casos como o de Cova da Moura, mas também na forma como a Polícia actua em manifestações de estudantes, de trabalhadores e suas organizações, o que manifestamente não acontece nas recentes iniciativas racistas e xenófobas. Aí, o que salta à primeira vista é brandura e complacência, o que leva a pensar e a pôr em causa o papel das forças policiais, ressaltando claramente a intenção repressiva, como em tempos idos de má memória. Se a Polícia é o garante da defesa e da segurança dos cidadãos, é caso para dizer que mal estamos quando o que acontece, na maior parte dos casos, é o cidadão ter medo da força de quem o diz defender. Convém lembrar, a este propósito, a intervenção da PSP, exactamente há um ano (Novembro 2023), em Lisboa, nos campus de Instituições de Ensino Superior, designadamente na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, na Faculdade de Psicologia e do Instituto da Educação da Universidade de Lisboa e na Reitoria da Universidade de Lisboa, onde a Polícia foi chamada para impedir a liberdade de expressão e de manifestação de estudantes do ensino superior. Uma manifesta opção pela atitude repressiva ocorreu este ano, no mês de Maio, aquando da intervenção policial na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, para expulsar estudantes que estavam acampados na Faculdade de Psicologia para exigir um cessar-fogo imediato em Gaza, uma manifestação pacífica, que, por responsabilidade da Direcção da Escola e da Polícia, redundou em violência e detenções. A mesma situação, com idêntica intervenção, viria a ocorrer também no Porto.

Reprodução Cmtv.

A expressão de um estado violento, dentro de um Estado violento, traduz-se genericamente na intervenção de forças policiais, a mando do Estado, ou dos seus representantes, em situações, ou zonas determinadas, onde não se encontra em risco a segurança pública. Quando tal se verifica poderá falar-se em exorbitação de funções, resultante, ou de um simples abuso, ou da adopção de uma prática securitária obsessiva.

O professor e cientista político brasileiro Luis Felipe Miguel é um dos autores contemporâneos a estudar e analisar o fenómeno que define a democracia como um processo contínuo de enfrentamento da dominação social. Na sua obra de 2018, “Dominação e Resistência”, o Autor fala numa intencional desdemocratização neoliberal e evoca, nomeadamente, Habermas e Bourdieu, para explicar a violência do estado burguês e justificar a resistência contra a repressão e a violência estatal. Quando se procura a origem da violência chega-se à conclusão de que ela poderá estar mesmo dentro do próprio Estado e das estruturas que o suportam. Como bem afirma a historiadora Raquel Varela, em texto publicado esta semana nas redes sociais, onde diz que florescem nas sociedade autênticos “partidos-milícias” que “…são apoiados pelos media, onde se constroem como estruturas eleitorais que manipulam os sentimentos mais desesperados de camadas das populações fartas de retrocesso de vida e trabalho.”

Muito embora o senso comum tenda a ver nas polícias uma fonte de protecção dos cidadãos contra os bandidos, a realidade é bem diversa e mostra um lado lunar das designadas forças da ordem. Na verdade, a única ordem que parecem ser capazes de defender é a ordem do estado burguês, com a consequente repressão de quem trabalha e que é oprimido e subjugado.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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