O Cooperativismo é o mesmo, mas o desafio é maior

Marcelo de Andrade *

Quem vive e defende o Cooperativismo talvez ainda não se tenha apercebido da oportunidade e importância que o movimento tem à braços neste momento histórico. A exemplo do seu surgimento organizado, a partir de ideais de fins do século XIX e das concretizações no início do século XX, as cooperativas estão na origem de toda a evolução económica e social da Humanidade, desde então. E hoje, mais do que nunca afigura-se como das poucas soluções lúcidas para a sobrevivência da espécie.

Todas as conquistas sociais, limites minimamente saudáveis de horas de trabalho, abolição do trabalho infantil, sistemas de saúde pública e previdência, férias, o que vier à mente, repito, todas, foram alcançadas à partir da luta das classes trabalhadoras, e não de um único e abençoado proprietário dos meios de produção. Hoje conhecidos carinhosamente, e com alguma inveja, como multimilionários. Nenhuma destas conquistas foram concedidas originalmente por quem explora o trabalho de outrém. Não acredite em cantilenas, ser “empreendedor” não é ser um vencedor na economia de mercado. É apenas uma forma independente de ser explorado. Iremos voltar a falar sobre isso mais à frente. Voltemos agora às conquistas (colectivas) das pessoas que não herdaram propriedades produtivas: as trabalhistas foram alcançadas pelos trabalhadores (no campo ou na indústria) organizados, a maior parte das vezes em sindicatos livres. As conquistas políticas (direito ao voto feminino, a falácia da liberdade de expressão, os regimes ilusoriamente democráticos etc) também foram conquistas colectivas. As conquistas económicas, quando colectivas, sempre foram amiúde conquistas em regime de cooperação.

Mas atenção, não há tempo para celebrar mais um Ano Internacional das Cooperativas. Até porque a ONU, que o promove, está em risco de ser severamente esvaziada em seus financiamentos, e mesmo em sua missão, desde que foi fundada no pós-guerra mundial. Entre os “Aliados”, agora a nova ordem é o salve-se quem puder. A realidade urge um forte Cooperativismo.

O verdadeiro empreendedorismo é colectivo, é cooperativo!

Mas basta de introduções didáticas e vamos aos factos. A vitória de Trump oficializa uma nova era de visão económica, mais honesta, onde parece agora clarificado (em números estatísticos) que os multimilionários estão a acumular mais riqueza do que nunca, enquanto os trabalhadores estão a perder gradualmente os direitos mínimos, conquistados à custa de muito sangue derramado. Não é preciso ir muito longe. Um pequeno exemplo, cá em Portugal: as sucessivas trapalhadas de nomeações de gestores incompetentes na Saúde não revela apenas inabilidade do actual governo (o anterior também era mal), mas sim um objectivo cada vez mais claro de dilapidar o Sistema Nacional de Saúde e favorecer, com recursos públicos, ainda mais, as corporações de saúde privada. Não acha que é hora de lutar para que sejam evidenciadas iniciativas cooperativas, fazer como os movimentos mutualistas tantas fizeram para assegurar o que o Estado não conseguia, e os multimilionários sempre exploraram? Quando digo lutar, é fazer alguma coisa. Envolver-se colectivamente, em agremiações, mesmo que recreativas, associações, vale tudo. Menos online, com o dedo a fazer swiping o dia inteiro.

Outro exemplo próximo? A Europa já deixou de ter relevância económica mundial. Aceita que dói menos. A solução é a desagregação? Cada Estado-membro por si? Não, ao contrário, é mais união. Mas efectiva, e a partir dos próprios recursos, e não sob a tutela dos Estados Unidos da América. A nova administração estadunidense já deixou bem claro que não conta com a Europa como parceira, mas sim com alguns países que por mero acaso são Estados-membro. O financiamento à economia alemã acabou. Acabou-se o “milagre”, e a Alemanha de hoje revela uma indústria frágil e obsoleta. De pouco vale a precisão de um produto germânico frente a um carro eléctrico que desfaz-se de tão mal construído. Mas todos querem (ou são forçados a) comprar.

O diplomata espanhol Jorge Dezcallar bem observou, em entrevista à BBC, que a Europa tem cada vez menos relevância económica mundial. Não temos uma política energética comum, nem política de imigração comum. Para além disso, o Estado Social é caro, e a Europa não vai conseguir mantê-lo. Frutos das conquistas dos trabalhadores e enaltecidos por diversos pensadores europeus (para não dizer “eurocêntricos”), o direito à saúde pública e benefícios trabalhistas estão a ser erodidos. A população envelhecida precisa dos imigrantes para sustentar este Estado Social, mas segue sem saber como lidar com estes trabalhadores. Dezcallar aponta que o crescente investimento em armamento na Europa é uma amostra de quão desunida está. As munições produzidas pelos belgas são incompatíveis com os fuzis produzidos pelos checos. Os tanques franceses não são compatíveis com os alemãs. Não há uma indústria “europeia” de defesa. A NATO não é uma resposta, é uma tábua de salvação. E, mais uma vez, atirada pelos EUA.

“Cooperativismo ou Barbárie”

Deixemos de artifícios linguísticos, é de empresas cooperativas que estamos a falar. Empresa no real sentido de empreender. E não no sentido físico de um imponente edifício luxuoso, e um único patrão cada vez menos discreto a mandar em todos. O verdadeiro empreendedorismo é colectivo, é cooperativo! Já não tem piada voltar a lembrar que os valores Ambiente, Social e boa Governança (ESG, na sigla em inglês) sempre foram intrínsecos e inerentes aos valores de uma empresa cooperativa. Que todos os CEO e executivos empresariais, economistas, consultores devolvam às pessoas as palavras-chave apropriadas como se de uma invenção das big-tech se tratasse. ESG sempre fomos. Desta diretriz sabemos nós há séculos.

Não é tempo de celebrar o Cooperativismo. É tempo de reforçá-lo! Assim como as hoje centenárias cooperativas ajudaram a edificar a cidade do Porto (quando este município acumulava enormes dívidas nacionais), poderiam hoje ser uma das soluções para a crise de habitação. Assim como diversas cooperativas asseguraram saúde, complemento à reforma, comércio para consumo acessível, e tantos outros benefícios numa altura em que a iniciativa privada era insípida e inexistia uma Segurança Social pública, passados tantos anos muitas mantêm ainda hoje as portas abertas e podem ainda alargar a sua influência. Todo o movimento mutualista pode tornar-se mais independente do Estado, e mesmo de maneira complementar, servir ainda mais todas as pessoas, e não apenas os poucos que podem pagar por uma saúde privada (que depende sempre do SNS quando uma situação clínica se agrava). No campo, a força das cooperativas não está em imitar o agronegócio, mas sim em impulsionar as soluções cooperativas de crédito à produção. Poucos sabem, mas as instituições de crédito agrícola são concretamente resilientes em tempos de crise financeira. Os dados estão disponíveis na Agrimútuo, não há cá “planos de salvação” à novobanco. A credibilidade de uma banca de proximidade resiste (e não resilia) nas comunidades, contra a “comodidade” de ter um banco impessoal, apenas disponível no smartphone. Já há soluções cooperativas portuguesas de turismo de base local, de energia sustentável. Que venham mais.

No ano em que este Diário 560 alcança 10 anos de actividades, pretendemos estar ao lado das iniciativas que promovam mais voz ao “empreendedorismo” cooperativo. Mais força às iniciativas colectivas, ideias de trabalhadores que não querem um único patrão, mas sim, querem ter todos os colegas despidos de interesses pessoais (todos nós os temos, mas mantenhamo-os fora da cooperativa) a trabalhar para soluções comuns. Se o patrão não resolve, resolvemos nós da cooperativa. Se o Estado não consegue, conseguimos nós da cooperativa. Se perdemos o gás, pensemos em soluções nós da cooperativa. Poderia lançar mão de palavras de incentivo, palavras-chave, slogans, brados, alguns conhecidos, como “O Futuro é Cooperativo”, ou “Cooperativismo ou Barbárie”, ou ainda a frase atribuída a Kropotkin “A competição é a lei da selva, a cooperação é a lei da civilização”. Mas nada supera tirar o dedo do telemóvel (até então chamado de “levantar o rabo da cadeira”) e ir arregaçar mangas juntos!

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Marcelo de Andrade
Editor do Diário 560. Jornalista e Fotojornalista há 35 anos.

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