Em busca da Cidadania perdida

Alfredo Soares-Ferreira *

Percorremos territórios diversos em busca de definições para a Cidadania, mesmo suspeitando que não sejam consensuais. O étimo da palavra não deixará dúvidas relativamente às raízes do termo, que só é conceito, na medida em que tal signifique a ruptura necessária com passados recentes e compatível com o reconhecimento de direitos e deveres do cidadão. Cidadania remonta a civitas/cidade, a que os gregos antigos chamavam “polis”. Daí, o termo política, que poderá ser assimilado à assunção completa da cidadania, na tradição republicana da Revolução Francesa de 1789, da Comuna de Paris, de 1871 [na foto] e da Revolução Russa de 1917, quer contra o absolutismo e adopção dos valores da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, quer na forma de insurreição social contra a burguesia e a instalação de governos geridos pelo proletariado. No final do século XVIII quebrou-se o princípio de legitimidade, baseado nos deveres dos súbditos, estabelecendo-se um outro de tipo novo estruturado a partir dos direitos do Cidadão, aquele que habita a Cidade enquanto comunidade politicamente articulada, que lhe pertence e que deve poder dirigir em plenitude.

Nestas sociedades, a Cidadania fica para trás, tudo é esquecido em nome da “democracia”, um jogo em que apenas existe um vencedor que está obviamente estabelecido antes de o jogo começar.

Uma Autora que estuda a Cidadania e os movimentos sociais da actualidade, é a filósofa norte-americana Nancy Fraser, conhecida como activista feminista e que alinha o seu pensamento com a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt. Nancy interpreta a Cidadania como um repositório de conhecimento, na absorção integral das reivindicações por igualdade material, o que a leva a confirmar o reconhecimento incorreto dos grupos sociais e a má distribuição da riqueza, como as duas formas básicas de injustiça social. E que incorpora ainda, uma rejeição ao feminismo liberal, que considera como “servo” do capitalismo, criticando a política de identidade à margem da luta de classes.

A Cidadania como expressão da participação na vida política dos países tem vindo a ser desmanchada nas últimas décadas e conduzido a um empobrecimento das “democracias ocidentais”, convencidas da sua superioridade ética e até moral. O resultado é sempre o distanciamento entre decisores e cidadãos, sendo reservado a estes praticamente o exercício do voto, entretanto perfeitamente condicionado pela acção da burguesia dominante e do seu aparelho de estado, ao serviço do poder neoliberal. O cidadão deixa assim de o ser, passando para um estatuto de “consumidor”, mero “observador” dos fenómenos sociais e não interveniente, com todas as consequências daí inerentes. O poder burguês tem por primeira função convencer o eleitor-consumidor que o seu voto é determinante para “melhorar a democracia”, ou até que “o voto é a arma do povo”. Sabe-se que uma arma descarregada pode até, em determinadas circunstâncias, jogar contra quem a carrega. Nestas sociedades, a Cidadania fica para trás, tudo é esquecido em nome da “democracia”, um jogo em que apenas existe um vencedor que está obviamente estabelecido antes de o jogo começar. Para cúmulo, a organização social determina, também à partida, qual o papel que cada País vai desempenhar para melhor servir o capital financeiro. A dita “união europeia” é o melhor exemplo vivo, em que as decisões fundamentais são tomadas a nível de um directório não-eleito, sem qualquer representatividade, restando aos Estados-Membros a submissão, como por exemplo, terem que submeter um orçamento à aprovação, antes de o mesmo ser apresentado no seu próprio País.

A Cidadania está hoje completamente esvaziada, de sentido e de propósito. Procurar a Cidadania perdida é um gesto, uma afirmação de vontade democrática e uma defesa contra a submissão. Falar em resgate significa pagar um preço, ao menos, pela ousadia. Se as sociedades ocidentais fossem democráticas, o processo de resgate admitiria regras específicas, o que significaria uma vontade específica para, por exemplo, executar uma acção qualquer para “recolher os sobreviventes”. Observando as perdas e danos que o sistema neoliberal já produziu até agora na classe trabalhadora, constatamos exactamente o contrário. O “sistema” inventa uma linguagem apropriada a cada caso, “salvar o país da bancarrota”, “ajudar o país a pagar a dívida”, exemplos conhecidos de mistificação, uma vez que as “intervenções de ajuda”, os designados “resgates”, não passam de agressões aos países e aos trabalhadores, que acabam por ficar pior do que estavam antes, mas que acabam por ser convencidos que estão melhor. Esta lógica de resgate é exactamente inversa à lógica corrente, ou seja, quem é resgatado espera recuperar algo em perigo ou em situação de vulnerabilidade. Toda e qualquer hipótese de negociação com os “sequestradores” para libertar os reféns está completamente afastada, uma vez que aqueles nunca irão assumir que o são.

Ir em busca da Cidadania perdida é tarefa de vulto. No entanto, algumas pistas podem ser avançadas, sendo que a primeira das quais parece à partida muito simples, na medida em que tem a ver com a descoberta da realidade de como tudo se passa e se desenvolve, nestas sociedades. Bastará para tal ter verdadeira consciência, querer ver, saber e intervir. Perceber talvez que a Cidadania está sempre em construção e que impõe uma educação específica. É uma espécie de acto colectivo, sujeito a contradições e consensos. Implica, tal como num resgate tout court, uma superação, uma transformação, uma busca por algo que estava perdido e tem de ser encontrado. Assim como será necessário contar com equipas treinadas, equipamentos adequados, seguir os procedimentos correctos e garantir a segurança de todos. Não havendo, na filosofia e na prática políticas, receitas concretas e certeiras, há decerto critérios e metodologias adequadas para acertar e tomar decisões, em momentos oportunos. Readquirir a consciência perdida pode ser um bom começo.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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