Alfredo Soares-Ferreira *
Este século em que vivemos não pára de nos surpreender, quer com teorias deslaçadas, quer com práticas abstrusas. Entre muitas e variadas, escolhemos esta, pela curiosidade e espanto e também por uma impressionante actualidade. É aqui, na Europa, o velho continente que não consegue olhar para além do seu umbigo e parece ver à sua volta apenas a ameaça do outro, um fenómeno que tem na rejeição a verdadeira substância.
A história regista o ano de 1874 como data da patente de um invento que consistia em pontas de ferro enroladas num fio, na verdade a primeira tecnologia de arame capaz de conter o gado. Embora a primeira patente tenha sido outorgada sete anos antes, nos EUA, o mérito da invenção foi para Joseph Glidden, um pequeno proprietário agrícola norte-americano, que acabaria por morrer trinta anos depois, como um dos homens mais ricos do país. Consta que tenha classificado a “coisa” como “a maior invenção da década”. É a ele que se deve a construção da primeira máquina capaz de produzir o arame farpado em larga escala.
Notícias recentes dão conta de que a Finlândia gastou 380 milhões de euro em arame farpado, ao mesmo tempo que a Bulgária está a construir uma vedação com três metros de altura, em arame farpado, ao longo da fronteira com a Turquia, para impedir a entrada de imigrantes clandestinos. A Dinamarca mandou trabalhar mais um dia, para conseguir pagar custos com a defesa, um vórtice que constitui o centro da paranóia com a defesa, seja lá o que se entenda o conceito de defesa de um país, ou de uma região.
“… a perfeição de um instrumento
Olivier Razac
de exercício do poder não se mede
pelo seu refinamento técnico”
Na verdade, são mais de dois mil quilómetros de arame farpado, que a Europa se propõe montar. A aparente função do dispositivo é para separar pessoas, impedir a passagem. O lado simbólico é muito forte, deixa de ser matéria concreta para se tornar uma ideia, um conceito. O filósofo francês Olivier Razac, um estudioso de Michel Foucault, ao debruçar-se sobre os fenómenos da designada biopolítica e particularmente interessado nos mecanismos de integração e exclusão, publica em 2009, na Flammarion a obra “Histoire Politique du Barbelé (História Política do Arame Farpado)”. Num artigo de 2013, publicado no jornal Monde Diplomatique, afirma que o arame farpado é, há 140 anos, um símbolo da opressão, que se terá diversificado e assumindo “versões ecológicas”, simbolizando as “metamorfoses do poder”. A sua visão do mecanismo é muito interessante, mostrando que “… a perfeição de um instrumento de exercício do poder não se mede pelo seu refinamento técnico”. É a eficácia que conta e que, nos dias de hoje, assume um refinamento que vai ao ponto de inventar cercas naturais, de plantas com espinhos, que ferem a sério, mas que até dão flores simpáticas na primavera.
A marca é pois, ou parece ser, o impedimento de entrada, a separação de seres humanos, a demarcação evidente de territórios, não por determinantes geográficas, mas sim pela tentativa deliberada de “protecção” de alguns, curiosamente os mais favorecidos por um sistema económico que perdeu definitivamente a vergonha, que explora de forma indigna milhões de seres humanos e não hesita em retomar a velha divisa “dividir para reinar”, circunstância que, diga-se de passagem, tem conseguido cumprir, de forma brilhante. E esta “união” que foi imposta aos povos da Europa, com promessas de futuro dourado, está dia a dia a mostrar as garras, que se afiam, na ameaça à dignidade e à solidariedade, que supostamente eram os seus desígnios iniciais. É mais um sinal que os responsáveis, governantes e funcionários, pouco ou nada aprenderam nas últimas décadas, ou simplesmente se recusam a aprender. A prova está na prática política. Recorda-se, a título de exemplo recente, a proposta de um novo pacto sobre migração e asilo, do ano 2020, que não só não foi aprovado, como viu reduzido ou mesmo anulado o seu efeito, com as iniciativas securitárias da construção de muros e barreiras de arame farpado. O exemplo vem do leste europeu e de países que conhecem bem o significado o resultado prático de muros e barreiras, que remontam nomeadamente ao período da ascensão e domínio nazi.
Entretanto, registaram-se, no ano 2022, mais de 330 mil entradas ilegais na EU, um valor que representa um acréscimo de 64% relativamente a 2021, segundo dados do Eurostat.
E constata-se a existência de um outro “muro”, sem arame farpado, chamado mar, que também faz as suas vítimas: no mês de Fevereiro passado, em Itália, mais um naufrágio, em número superior a uma centena, incluindo crianças e mulheres.
A importância da questão em análise é salientada pelo jornalista inglês Timothy Douglas, que é também economista, num artigo de 2017, que denominou muito a propósito “Como o arame farpado mudou a propriedade privada”, notando que, no velho oeste dos EUA, nem os cowboys gostavam dele, mas que marcava bem a propriedade privada, porque incentivava as pessoas a investirem, um argumento aliás utilizado contra os indígenas, que supostamente, segundo o homem branco, não sabiam aproveitar devidamente os terrenos e, “naturalmente” perdiam o direito a eles. Conclui Douglas que “…a forma como o arame farpado transformou o velho oeste é também a história de como os direitos de propriedade mudaram no mundo.”
O filósofo e professor francês Alain Brossat, que escreveu o prefácio do livro de Razac, faz referência à utilização do arame farpado na filmografia do cineasta Fritz Lang, bem como nos filmes que lembram os campos de extermínio nazi e em obras de outros realizadores de cinema, como uma “metáfora da violência política” e um “símbolo da crueldade do homem para o homem do século XX”. E, por falar em cinema, assinala-se com muita propriedade a filmografia do realizador francês Tony Gatlif, de etnia cigana e argelina, em que o arame farpado é de certa forma revertido em pautas musicais e cordas de guitarra, a transmutação para matéria artística do símbolo separatista, ou a música a resistir ao mal.
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