A falácia da estabilidade

Alfredo Soares-Ferreira *

Um espectro assombra a Europa”, o espectro da “estabilidade”. Apetece parafrasear a conhecida asserção, aqui virada de um avesso oportuno. Ou a estabilidade ou o abismo, sendo que este pode até estimular alguma criatividade, quanto mais não seja ao ponto de querer saber um pouco mais do dito, uma vez que existem testemunhos suficientes que suportam a tese, porventura maléfica, que já nele estamos mergulhados há algum tempo, pelo menos há duas ou três décadas. Esse (abismo) é bem conhecido dos cidadãos, particularmente dos mais carenciados, os que trabalham e produzem a riqueza das nações. Equacionar uma teoria da estabilidade poderá constituir um desafio, sobretudo para quem navega nas águas e torrentes da política. Saber se a temática em apreço merece tal tratamento equivale em primeiro lugar estabelecer uma definição do termo e depois a verificação epistemológica, no sentido de encontrar algum fundamento para além do possível valor e importância.

Um dos autores clássicos a defender a estabilidade foi o cientista político norte-americano Samuel P. Huntington. Na sua obra “Political Order in Changing Societies” de 1968, Huntington argumenta que a estabilidade política é essencial para o desenvolvimento económico e social, particularmente nas designadas sociedades em transição e, como tal, defende que tal só é possível com instituições políticas fortes que sejam capazes de evitar a desordem. Os críticos argumentam que normalmente a estabilidade pretende manter o ordem existente, através da limitação dos direitos humanos e de cidadania. Já anos 30 do século passado o político e escritor italiano Antonio Gramsci escrevia nos seus “Cadernos do Cárcere”, que a estabilidade política pode ser mantida através da hegemonia cultural que perpetua o poder das elites dominantes. Também a filósofa política alemã Hannah Arendt alertou para os perigos de uma estabilidade política imposta para eliminar a pluralidade e a liberdade, na sua obra de 1951, “The Origins of Totalitarianism”. E, no tempo actual, vão no mesmo sentido as inúmeras intervenções e comunicações do linguista e filósofo norte-americano Noam Chomsky.

Uma significância possível do termo “estabilidade” entronca no que é estável ou se mantém constante, mas também no que tem de continuidade, preservação ou mesmo imobilidade. Se do equilíbrio compreendemos a constância, do instinto de preservação poderemos esperar, apenas e só, a imobilidade. Quanto à possibilidade de verificação científica, constataremos decerto a falácia reportada no título, quando nos transportamos para o campo da política em abstracto, ou das políticas em concreto. E, nesse campo sempre arriscado e pleno de profundas lacunas, iremos encontrar o verdadeiro sentido do termo, se pensarmos no cidadão e nos seus desejos liminares de uma verdadeira estabilidade. Em concreto, estabilidade para o cidadão significa ter um emprego e auferir de um salário que lhe permita viver dignamente, na sua casa e com a sua família ou amigos, com o conforto desejável e usufruir da sua zona de conforto social, com transportes baratos, ou mesmo gratuitos e com equipamentos e infra-estruturas urbanas, culturais e recreativas, que lhe proporcionem a necessária estabilidade emocional. Estabilidade significa ainda governar para os cidadãos e não propriamente contra eles. Nessa medida, o Governo (qualquer governo) teria como missão primordial criar e aplicar as medidas públicas essenciais para proporcionar aos cidadãos a necessária estabilidade.

devemos colocar o interesse nacional acima do interesse partidário”, não passa de um paradoxo burlesco

Todavia, não é esse o entendimento dos governantes. Nem da miríade de comentadores, a espécie que floresce e se “alimenta” da política. Para aquela imensa franja de burocratas não deve fazer o mínimo sentido o que atrás ficou registado. O que realmente lhes convém é a designada estabilidade política, um conceito muito querido ao centrão partidário, onde pontificam os partidos que têm “repartido” o Poder desde 1976. Por isso mesmo, o cenário montado nas últimas semanas, a propósito da hilariante (e ao mesmo tempo triste) cena de um primeiro-ministro a tempo parcial, diz bem da pretensa “maturidade” e “responsabilidade” dos partidos que defendem a estabilidade. As estafadas tiradas, como por exemplo, “o País não quer eleições…”, são apenas lucubrações fátuas de burocratas presumidos que se julgam intérpretes (e proprietários) do pensamento colectivo. Deve dizer-se ainda algo sobre a figura de estilo tão do seu agrado, o “interesse nacional”, uma vez que a sociedade é um lugar de interesses conflituais, em permanente mediação, ou mesmo em guerra aberta, conforme as situações o determinam. Então a costumeira e enganosa asserção “devemos colocar o interesse nacional acima do interesse partidário”, não passa de um paradoxo burlesco, destinado simplesmente a confundir, uma vez que os partidos políticos são representantes de interesses diversos e que a sua verdadeira função é a tomada do Poder, para fazer vingar esses interesses.

E, uma outra verdade, provavelmente não-conveniente, que resulta da acção partidária do dito centrão, quando actua separadamente ou em conjunto, é constatada em factos concretos na progressiva erosão do sector empresarial do Estado e na privatização sistemática do grupo de empresas estruturantes para a economia do país. O próprio Estado Social, em permanente desagregação, é porventura o exemplo que mais salta à vista. Aí, o centrão tem feito o seu caminho e o seu trabalho. De forma dissimilada com uns, de forma aberta e cruel com os outros, o certo é que a marcha continua, em aceleração descontrolada, sempre em nome da estabilidade. E, diga-se, em boa verdade, do tacticismo e da burocracia, os maiores inimigos da política no seu estado puro e nobre. Não sendo a estabilidade um conceito neutro, constata-se que o seu uso (e abuso) constitui uma ferramenta retórica para justificar a manutenção do status e pode conduzir, no limite, ao controle e à visão da ameaça à ordem existente. Na prática das actuais “democracias” ocidentais significa claramente a resistência a algumas mudanças na redistribuição de riqueza, ou em medidas de justiça social, sempre com a alegação de que as mesmas poderão desestabilizar a economia ou a sociedade. A leitura correcta daqueles argumentos centra-se hoje na estultícia das expressões “deixem-nos trabalhar” ou “é preciso assegurar a estabilidade”. E, o mais curioso é que são os arautos da estabilidade a criar a mais profunda instabilidade entre os cidadãos, causando danos nas pessoas que mais deviam respeitar.

As sociedades são organismos dinâmicos, em constante evolução e em conflito. É necessário saber interpretar as mudanças para compreender a realidade e intervir em defesa de direitos e princípios e pela libertação do jugo da dominação. Certa da defesa da revolução como meio de transformação social, Rosa Luxemburgo foi uma crítica severa do conceito de estabilidade política quando é alcançada através da supressão de conflitos sociais e da luta de classes. Até hoje, não foi contestada na essência do conceito.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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