Uma viagem pela ironia

Alfredo Soares-Ferreira *

“A verdadeira catástrofe é que tudo permanece igual”
Walter Benjamin

Bastará uma pequena incursão pela notícia diariamente construída, para aquilatar da sua verdadeira importância e do seu significado, directo ou indirecto e concluir da sua eventual serventia. Vem a propósito, a difusão massificada das intenções do presidente eleito nos EUA em reivindicar, conquistar ou anexar. Pode nem sequer ser importante falar especificamente na Gronelândia, Canal do Panamá ou outro qualquer, afinal não foi essa a política dos sucessivos governos imperais das últimas décadas, com intervenções guerreiras em todo mundo? Ainda que de uma forma mais ou menos disfarçada, ou camuflada com justificações abstrusas, contudo sempre sustentada. Agora é mesmo às claras, não há subterfúgio necessário. O que não deixa de ser uma ironia é a atitude patética de quem, não o apoiando, lhe segue as pisadas de forma submissa e subserviente. Uma outra ironia é a circunstância de tal poder ocorrer dentro da organização belicista do atlântico norte, aqui rebaptizada de OTAN para OBAN, muito embora o único “tratado” que a mesma realmente assume seja o desígnio imperial e de pilhagem do mundo.

A ironia anda muitas vezes de mão dada com a mentira. Assim o quis apresentar Umberto Eco, na sua obra de 1998, “Entre a mentira e a ironia”, em quatro pequenos textos, onde mostra o que significa subverter o sentido das palavras e também a capacidade de ironizar ou mentir. O carácter irónico define-se pela intenção do autor, ou seja, obedece ao que ele quer dizer. O poder da ironia mede-se pela provável desestabilização do sentido discursivo, ao introduzir ambiguidade de sentido. O filósofo romântico alemão Friedrich von Schlegel, da Escola de Iena, foi um estudioso da “ironia”, tendo-a definido como a alternância constante de auto-criação e auto-aniquilamento, ou uma espécie de oscilação entre o sim e o não, entre a ordem e o caos, enfim, entre a vida e a morte. O crítico literário norte-americano Wayne Booth escreveu uma obra sobre ironia, “A Rhetoric of Irony”, onde se propôs examinar o funcionamento da retórica irónica sobre o leitor e onde estabelece diferenças essenciais entre a ironia fixa, a metáfora, a alegoria, o trocadilho e a sátira. Uma forma subtil de ironia poderá ser encontrada em António Lobo Antunes, “Sempre que alguém afirma ter lido um livro meu fico decepcionado com o erro. É que meus livros não são para ser lidos no sentido em que usualmente se chama ler (…) as palavras são apenas signos de sentimentos íntimos, e as personagens, situações e intriga os pretextos de superfície que utilizo para conduzir ao fundo avesso da alma. A verdadeira aventura que proponho é aquela que o narrador e o leitor fazem em conjunto ao negrume do inconsciente, à raiz da natureza humana.” Esta forma de estar do Autor, convida os leitores (é essa a vontade dele) a ir descobrindo os significados do romance, “caminhando nas suas claridades e nas suas sombras”.

Considerando a retórica discursiva como uma forma possível de comunicação, somos conduzidos (na viagem pela ironia) a caminhar nas nossas sombras, com a claridade capaz de nos mostrar uma realidade que pouco tem a ver com a que é induzida, fabricada e devidamente propagandeada. Os casos mais recentes relacionados com a propalada “segurança” e da sua proximidade com a “protecção” contra aquele que é diferente provam, acima de tudo, a sobreposição da mais vil mentira. Todavia, não será suficiente mentir, torna-se “obrigatório” continuar a mistificação, como se constata nas declarações de Montenegro, após a Manifestação de Sábado passado, ao comparar maliciosamente aquilo que chama de “extremos”. Mas não só, ao comparar “duas manifestações”, quando o que houve foi uma manifestação e um grupo reduzido de arruaceiros fascistas a provocar, como sempre, repulsa e ódio.

É justo que se fale ainda de justiça. Na abertura do “ano judicial” prevaleceu a ironia, desta vez uma espécie muito especial que se poderá classificar como “instável”. As recitações dos burocratas de serviço, Ministra e Procurador-geral, “As vítimas de crimes devem ocupar um lugar cimeiro do sistema judicial. E não falo só das vítimas do crime de violência doméstica, mas das vítimas de todos os crimes contra as pessoas ou contra o património”, ou “Estamos empenhados em assegurar que é criada uma efectiva cultura de recuperação dos activos para a criminalidade económico-financeira em Portugal”, para além de serem perfeitamente iguais todos os anos, constituem na verdade a ironia que se propõe a aceitar seriamente o que ela não faz. E, para cúmulo (mesmo sem ser jurídico), a deliciosa promessa de criar (mais) um grupo de trabalho “…que se vai debruçar sobre matérias de promoção da celeridade processual e de combate aos expedientes dilatórios”, que raia o ridículo, sem necessidade de comentário adicional.

As ironias reportadas parecem destinadas a encaminhar os cidadãos a entrar numa espécie de jogo para mostrar que as suas regras são estúpidas ou viciadas. A capacidade de entrar (ou não) nesse jogo não está propriamente ao alcance de qualquer um. Assim, necessário será procurar avenidas de liberdade, devidamente identificadas, para prosseguir a viagem pela ironia, tendo em (alta) consideração as dicotomias, para que seja viável a construção de dissidências objectivas. Voltando a Lobo Antunes, possivelmente para procurar o avesso da alma humana, uma outra ironia, que o autor quer mostrar nas suas obras. Ou a Walt Whitman, que nos propõe que o homem abandone “…toda a conformidade às vidas ao seu redor”. Atentos, isso sim, nomeadamente à “catástrofe” de que fala Benjamin, uma vez que a viagem pela ironia, mais que um simples deleite, deve querer suportar os custos requeridos para a necessária revolução. Não apenas conceptual.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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