Alfredo Soares-Ferreira *
Assistimos hoje em todo o mundo, muitas das vezes impávidos e serenos, a uma peça de características infames, escrita por “dramaturgos” experientes e montada por encenadores espúrios, com um roteiro bem definido e com um elenco de actores cuidadosamente escolhido pela sua confessa perfídia. O texto é sempre o mesmo e segue uma litania conhecida, embora existam, aqui e ali, pequenas variações, com palavras e termos diversos, consoante a encenação, o local onde é apresentada e a capacidade, fluência e ousadia dos actores. Conta ainda com um exército imenso de figurantes, alguns que se limitam a marcar presença e outros que são autênticos figurões, pela sua forma de estar e pela sua autenticidade, na defesa acérrima do roteiro. A linguagem utilizada na peça parece decretar a morte da cultura como a entendemos e pretende apresentar a designada “cultura de guerra” como um mecanismo automático que configura a retropia como fundamento estimulante. Uma epopeia retrópica é substancialmente reaccionária e poderá ter na nova administração norte-americana a melhor e mais conseguida interpretação. A ideia de retropia foi instituída pelo sociólogo e filósofo polaco Zygmunt Bauman, na obra de 2017 com aquele nome, em que o Autor fala nos perigos e riscos do fim do pensamento utópico, dizendo que ela se manifesta na desconfiança e num regresso a um passado mitificado, que realmente nunca existiu.

O conceito de “teatro épico” tem origem em Bertolt Brecht, sendo que o termo “épico” é usado em termos técnicos, como um género narrativo de carácter dramático, como o provam numerosos exemplos clássicos, desde a Epopeia de Gilgamesh, um épico sumério, com quatro mil anos e que antecedeu a Odisseia de Homero. O teatro épico foi explorado no sentido de envolver o espectador na narrativa, na criação de um efeito de distanciação e na recusa da ilusão, em contraste com o teatro dramático que apela à identificação e à comoção. E, por falar em ilusão, importa referir a falácia das “ameaças à democracia”. Acontece que a primeira das ameaças à democracia é a forma como as designadas “democracias” funcionam. Por isso mesmo se torna necessário “encenar” uma narrativa, que configura o “entorno democrático” como centralidade, quando, na verdade, se há coisa que deixou de existir nas sociedades ocidentais foi mesmo a democracia. Outro exemplo muito significativo é a entrada em cena de personagens que ninguém escolheu, mas que, por força de “novas regras”, habitam e personificam o Poder.
A adaptação hodierna é uma passagem para um épico retrópico, onde não existe de forma alguma a primeira imagem do teatro de Brecht, precisamente a preservação de uma atitude crítica do espectador, nem aquilo que era considerada uma eficiência pedagógica envolvente. O teatro como “instituto didáctico”, assim o classificava o crítico literário alemão Anatol Rosenfeld, na sua obra de 1965, “O Teatro Épico”, dá hoje lugar à espectacularidade acrítica e acéfala, uma epopeia retrópica, em que a instalação do medo ocupa um lugar central.

No teatro de Brecht acentua-se uma linha fundamental que consiste em tornar insólito o que é habitual para o expor à crítica. No “teatro” do século XXI, a peça proporciona o habitual como caminho de sentido único, sem qualquer hipótese de crítica, considerada como oposição ao “normal funcionamento das sociedades”. No teatro do dramaturgo português Bernardo Santareno, autor de textos dramáticos talentosos e insubmissos, as peças dos anos sessenta do século passado introduzem o teatro épico como oposição firme e desassombrada ao fascismo e relatam as condições de vida degradantes de pescadores e marinheiros. No “teatro” da vida actual, do fascismo branco e do cancelamento permanente das vozes incómodas, impera a propaganda e a mentira descaradas, utilizando a tecnologia como ferramenta eficaz para a submissão e dominação. No teatro épico, como bem lembra Walter Benjamin, a distância introduzida entre espectador, personagem e actor, transforma o espectador em observador, despertando-o como sujeito social e político. Na “grande peça” encenada pelo capitalismo neoliberal, o espectador é adormecido pela balada insana da social-democracia. O teatro épico de Brecht introduz a perturbação na ordem existente. O teatro épico retrópico induz a aceitação da desigualdade social e a negação da luta de classes.
A ciclópica tarefa de montar “a peça” por toda a parte, segundo o conhecido lema “numa sala bem perto de si”, implica recursos avultados e infra-estruturas adequadas, para além de cenários apropriados que apelam à resignação (hoje baptizada como resiliência) e apresenta o investimento em defesa como solução para todos os males, para “simplesmente” tentar impor a guerra permanente. É uma epopeia retrópica, encenação de uma realidade ameaçadora.
A estupidificação é uma das bases do pensamento retrópico. A simplificação binária, eles e nós, é o primeiro passo para a instalação do princípio da rejeição do outro, tido como inoportuno, indesejado e objectivamente inimigo. Trump é apenas a figura de um vasto movimento de negação cultural, fácil de catalogar, porque personifica o “mal” que tememos, mas que aceitamos porque está (aparentemente) longe e porque pensamos que ao insultá-lo e diabolizá-lo resolvemos o problema e ficamos de consciência tranquila. Esta é, contudo, também uma lógica perversa por significar a conformação com a retropia e a aceitação da “peça” como mais um acontecimento que, à semelhança de muitos, será esquecido e passado para segundo plano no dia seguinte.
Esta “peça”, não.
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