Sobre isto não sabemos nada

Alfredo Soares-Ferreira *

“Yo no sé muchas cosas, es verdad.
Digo tan sólo lo que he visto…”

Leon Filipe, “Sé todos los cuentos”, 1950

O que hoje sabemos pouco tem a ver com avanços científicos e tecnológicos, sociais ou antropológicos, parecendo ser evidente a instalação de um culto de ignorância. Caminhamos sem saber o que saber, a idolatria aparentemente em moda em perfeito desequilíbrio com a humanidade e a natureza. Misticismo e crendice andam de mãos dadas com a fé (parece ser uma fé) na estupidificação, sendo esta a primeira fase de um qualquer cancelamento. Os anos que começam em “2” parecem desprezar o conhecimento e a razão. Guiam-se por emoções disparatadas e condicionadas por uma nova linguagem inadequada e hostil à inteligência, um fenómeno bem patente no discurso dos burocratas que se vão apropriando do Poder, num Ocidente que mais parece uma feira de mentecaptos, onde campeia a mediocridade e a estupidez. As quais derivam directamente da “qualidade” dos líderes, que tratam os cidadãos como consumidores de produtos de baixa qualidade, tarefa de que a comunicação social do século XXI, propriedade de grandes empresas capitalistas, se apropriou com bastante sucesso. Saramago diria, a propósito, que a estupidez não escolhe entre cegos e não-cegos. Poderíamos acrescentar que, hoje em dia, a estupidez atravessa fronteiras e queda-se nos mais altos poleiros, zurzindo sempre a mesma verborreia soez, passando das palavras aos actos, com o beneplácito dos burocratas e revisionistas da História. Dois autores que se debruçaram sobre este fenómeno, merecem algum destaque. O ensaísta húngaro Paul Tabori, que escreveu em 1951, a “História Natural da Estupidez” e o professor de história económica italiano Carlo M. Cipolla, que editou em 1992 a obra “Allegro ma non troppo: Les lois fondamentales de la stupidité humaine”. Em ambos, é notória a referência à poderosa força potencial da estupidez humana, bem como uma certa ironia relativamente à personagem menor do “estúpido” que, apesar da sua insignificância natural, é capaz de granjear algum poder mediático.

O ano vinte e quatro termina, em Portugal, com a insegurança provocada pela segurança. Para quem pensa que a função das polícias é “proteger” o cidadão, estará na hora de saber um pouco mais sobre o papel repressivo do Estado burguês e dos instrumentos que aquele cria para defender a ordem existente, precisamente a que institui uma dominação de classe. Segurança, que continua, entretanto, e ser o tema preferido das elites europeias, unidas na saga russófoba de varrer tudo o que tenha a ver com uma cultura que faz parte do património civilizacional dos últimos séculos. Mas é nela (segurança) que as mesmas elites, completamente cegas e ávidas de fazer guerra, querem investir, de tal forma que dizem ser necessário cortar nas despesas com saúde, pensões e baixar os apoios à segurança social, como fez o Secretário-Geral da NATO, afirmando que nos devemos “…preparar para uma mentalidade de guerra”. As mesmas (elites) que ficam quedas e surdas ao genocídio praticado pelo estado terrorista de Israel, apoiando-o na sombra ou mesmo às claras.

Resta a dúvida se, sobre isto e outras coisas, queremos saber mais. Ou, se não queremos saber nada. Sustento que se torna necessário saber mais. Sobre as coisas e os acontecimentos. Sobre a tal “segurança”, uma das palavras incessantemente repetida durante o ano que terminou. Também sobre a guerra e sobre a paz. Sobre o domínio e sobre a opressão. Curiosamente, (ou não) com a vertigem da notícia e do comentário menor, já poucos se irão lembrar que 2024 foi o aniversário dos cinquenta anos da Revolução, transportada de forma artificial e ardilosa, para um Novembro de sombras e de negação. Precisamos saber algo mais sobre a “verdade única” de que nos fala o coronel jubilado do Exército português Carlos Matos Gomes na obra de 2023, “A Verdade Única e a heresia de pensar”, onde classifica a tal verdade como uma real ameaça e uma “negação da Liberdade de pensar”. Precisamos ainda saber mais sobre os banqueiros e investidores “respeitáveis”, que não passam de predadores criminosos que falam a linguagem do aumento da competitividade e da modernização e que influenciam governos e Estado a tomarem as medidas que lhes convêm para aumentarem exponencialmente os seus lucros.

Precisamos saber mais. E, no mínimo, ter alguma vontade em contrariar o que se poderia classificar como o exercício da dúvida, provavelmente um dos mais importantes direitos a que devemos ter direito. Quando o Poeta nos diz que de facto sabe poucas coisas e que diz apenas o que vê, ou o que viu, remete-nos para a sabedoria de quem conhece todos os contos. E que alguns deles, em forma de estórias, abafam e calam os gritos dos homens e que representam e alimentam o medo. Precisamos saber mais sobre a campanha de imbecilização em curso, que resulta numa espécie de sedação dos consumidores humanos, assim considerados pelos poderes neoliberais.

No final do ano, que desponta para um outro, poderíamos lembrar num jeito de balanço o “…doce balanço a caminho do mar”, do Vinicius de Moraes. Todavia, a Garota que um dia, em Ipanema, inspirou o Poeta, poderá ter-se eclipsado nas sombras e ter eventualmente dado lugar a um triste espectáculo a caminho do precipício. Não há como tentar saber mais um pouco sobre tudo isto.

About the Author

Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

Be the first to comment on "Sobre isto não sabemos nada"

Leave a comment

Your email address will not be published.


*