Reviver o passado na “Ocidentália”

Alfredo Soares-Ferreira *

Aqui se regista.

Aproxima-te um pouco de nós e vê. O País perdeu a inteligência e a consciência moral (…). Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos, já se não crê na honestidade dos homens públicos (alguns agiotas felizes exploram).  A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo (…) O salário diminui, a renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo. Neste salve-se-quem-puder a burguesia proprietária de casas explora o aluguel. A agiotagem explora o juro. De resto a ignorância pesa sobre o nosso povo como um nevoeiro, uma fatalidade. (…). A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do País (…). Não é uma existência, é uma expiação. E a certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Assim todas as consciências certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão!

Por muitas semelhanças que possamos encontrar com a realidade dos nossos dias, este registo tem quase 154 anos. Data de Maio de 1871 e consta de uma edição chamada “Prosas Esquecidas V”, de Eça de Queirós, do ano de 1966.

O ano de 1871 é pleno de acontecimentos marcantes na história da Europa. A 18 de Março é instalada em França a Comuna de Paris, o primeiro governo operário do Mundo. Apesar de apenas ter resistido até ao dia 28 de Maio, a Comuna representou um marco para o movimento operário internacional. Em Portugal, reinava D. Luís I e o primeiro-ministro era António José de Ávila. Foi neste ano que se realizaram eleições legislativas, no dia 9 de Julho. Em Agosto é criada a Secção Portuguesa da Associação Internacional do Trabalhadores, a I Internacional, fundada em 1864. Foi ainda o ano que marcou o início da publicação de “As Farpas”, bem como a realização das Conferências do Casino, que seriam encerradas pelo Governo, após a quinta, alegando que “as prelecções expõem e procuram sustentar doutrinas e proposições que atacam a religião e as instituições do Estado.” De notar que “As Farpas” tiveram como primordial objectivo, segundo os Autores Ramalho Ortigão e Eça de Queirós, “espicaçar a sociedade” e foram publicadas, em edições mensais, até 1882 e constituíram uma inovação no sector jornalístico português, uma caricatura da sociedade, profundamente satírica e de reacção à Regeneração, nos planos político, económico, cultural, social, moral e religioso.

Se “As Farpas” foram em Portugal o símbolo de um jornalismo de ideias, de crítica social e cultural, que dizer do jornalismo de hoje? Parece ter sido vendido ao desbarato, transformando a notícia e o comentário em produção de conteúdos, a hodierna asserção que significa basicamente a submissão completa da informação aos interesses dominantes de grandes empresas de comunicação, contando-se pelos dedos as iniciativas credíveis e de qualidade, livres das amarras capitalistas. Uma autêntica tristeza, contrastante com “Uma Campanha Alegre” que deu título ao livro publicado por Eça de Queirós em 1890, que reuniu os textos escritos de “As Farpas”. Ao contrário daquele tempo, os dias de hoje parecem ter aprisionado a linguagem e expulsado as palavras de revolta e de insubmissão, impossíveis sequer de soletrar, sob pena de cancelamento imediato. Dá ideia que restamos formatados e sem hipótese de sobreviver no universo hipotético da pós-verdade, a maior fraude do século XXI.

Valerá então reviver esse passado, no que designamos “Ocidentália”, uma assumida caricatura do que é hoje o Ocidente, na versão daquilo a que chamam “união europeia”, subjugada e vergada ao gigante norte-americano e que, com ele, se propõe manipular consciências e restringir liberdades e direitos adquiridos, através da figura execrável dos “não-eleitos” que, de facto, detêm o Poder. Esta “união” que foi responsável durante três décadas pelo cerco à Federação Russa e ainda por uma guerra que, entretanto, perdeu e não o quer, nem sabe, admitir. Uma “união” que é criminosamente cúmplice no apoio a Israel, desprezando os mais elementares direitos dos palestinianos, ao adaptar uma posição hipócrita, exactamente igual à do Império norte-americano. Uma “união” que caminha assustadoramente para o abismo económico ao apostar assumidamente na indústria da guerra, mascarada pela invenção da “segurança”, que significa basicamente a instalação do medo. Uma “união” que é tudo menos união e que é hoje a expressão das direitas extremas, com as quais o directório de burocratas convive pacificamente, ajudando-as a ter cada vez mais expressão noticiosa e política.

A associação caricatural ao título do romance do escritor britânico Evelyn Waugh, “Reviver o Passado em Brideshead” faz todo o sentido pelo destaque que o Autor deu ao declínio absoluto do mundo em que viviam os intérpretes nobres da estória. Os tempos que não voltam mais, associados a um passado sem retorno e do qual os actuais protagonistas, por manifesta incapacidade, não conseguem retirar as devidas lições, são o triste retrato que nos é apresentado no raiar do novo ano. Saibamos resistir e contrariar quem nos quer transformar em marionetas e joguetes, fantasmas da indiferença.

Espicaçar a sociedade” pode (e deve) ser o mote para 2025.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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