Alfredo Soares-Ferreira *
Na mitologia grega, Prometeu teria roubado o fogo dos deuses, tendo-o entregado aos homens. Da ousadia, em enfrentar a divindade em favor da humanidade, terá recebido o castigo devido, ficando o seu nome ligado ao conhecimento e à transformação da natureza, a que o fogo estará profundamente ligado. O termo “fogo” está ainda ligado, entre outras utilizações, à interjeição que exprime admiração, indignação e espanto, à conhecida voz de comando para disparar, ou aos conceitos de “fogo selvagem” e de “fogo fátuo”, cada um à sua maneira, fenómenos naturais de reduzida dimensão. Prometer fogo pode significar, nos tempos que correm, uma declaração de guerra, latente em ameaça, ou mesmo com acções condizentes. Prometer fogo pode ser perigoso se interpretado à letra e levado a sério, com as consequências que daí advierem. Do mau uso do fogo não poderemos decerto culpar Prometeu que, ao que consta, estava cheio de boas intenções. O mesmo parece não poder dizer-se (no que toca a intenções) de quem parece usar e abusar do território, numa permanente acção contrária à gestão equilibrada de recursos e bens. Na verdade, a subida para uma assustadora percentagem de ocupação de 10% do território nacional pelo eucalipto, superior ao que constitui a área florestal, significa em si mesmo um desrespeito pelo ordenamento e naturalmente, pela natureza.
A conhecida tendência para falar, a este e outros propósitos, através de chavões está bem patente na frase repetida mil vezes e que parece descansar os burocratas, “não preparamos devidamente a transição energética”. Para além do seu significado vazio, é bom que se diga que não há transição alguma, mas sim acumulação de tipos de energia diversa e que, no caso vertente, apenas quer mostrar a incapacidade natural dos dirigentes em dar resposta a qualquer problema. A asserção “alterações climáticas”, que erradamente é associada à anterior, pretende exacerbar nos cidadãos o sentimento catastrofista e, por outro lado, a culpabilização individual, comum nos tempos actuais. O que temos de constatar é que elas (as alterações) são uma realidade e que tem que haver capacidade e competência para lidar com elas, coisa que os governos, muito particularmente este, manifestamente não têm. E quando a acção dos activistas climáticos tenta alertar para a realidade das alterações rápidas no clima, é sucessivamente reprimida pelo poder burguês, sempre com as suas polícias atentas e prontas para tal.
As questões em apreço, intimamente ligadas à ecologia, têm, entretanto, uma abordagem quase sempre incorrecta e desenquadrada, naquele que constitui certamente o centro do problema e que tem a ver com a natureza do sistema económico. Ao abordar a ecologia pela superfície, sem ir à profundidade, os actores, putativamente contestatários, que acreditam na bondade e na cor “verde” para pintar o capitalismo, estão a mascarar as questões e a contribuir para que tudo fique como está, mesmo que alguma coisa mude. É uma espécie de interpretação espúria da realidade, contra a qual lutaram muitos pensadores ilustres do início do século XX, como o economista e matemático romeno Nicholas Georgescu-Roegen, que insistiu sempre, na sua extensa obra, na interligação entre a natureza e a ciência, mostrando a complexidade dos macrossistemas biológicos e sociais, rejeitando a epistemologia mecanicista.
Quando o primeiro-ministro em exercício fala de “interesses” estará a culpar o seu parceiro de armas Passos Coelho que, nos tempos da troika, favoreceu os patrões da celulose?
O professor norte-americano Stephen J. Pyne, da Universidade do Arizona, um especialista em história do fogo, publicou em 2022, a obra “The Pyrocene”, onde discute os usos e funções do fogo tanto cultural quanto histórica, desde os incêndios agrícolas até a queima de biomassa fóssil. A este propósito, o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (CES) promoveu a devida divulgação da obra, no passado mês de Maio, com uma actividade que designou “Análise Histórica e Política do Fogo”, integrada na série Grupo de Leitura de Ecologia Política 2024 da Oficina de Ecologia e Sociedade, um contributo da Academia para as questões ambientais.
Se já é difícil encontrar respostas adequadas e em tempo, no nosso País, a temperaturas acima dos trinta graus e ventos com velocidades de quarenta quilómetros por hora, o que não será quando tudo se conjuga negativamente para proteger as populações e preservar os seus parcos bens. Poderia dizer-se, em casos como este, que seria necessária uma conjugação de esforços, no sentido de promover medidas concretas, nem que seja para minimizar o problema e evitar mortes desnecessárias de cidadãos e profissionais dos bombeiros. Todavia, há dezenas de anos, que só se aborda a questão, em cima do acontecimento, no que constitui mais uma prova de incapacidade, incompetência e até incúria. Quando, numa conferência de imprensa, um primeiro-ministro não permite a colocação de questões, com a ministra do sector escondida a sete chaves e se limita a culpar meia dúzia de incendiários estará provavelmente tudo dito. Ou então, não. Quando o primeiro-ministro em exercício fala de “interesses” estará a culpar o seu parceiro de armas Passos Coelho que, nos tempos da troika, favoreceu os patrões da celulose e colocou o seu Secretário de Estado das Florestas na direcção da associação que os representa? Serão esses os “interesses”? Nesta perspectiva, a questão dos interesses passa a ser agora mesmo muito interessante.
A lembrança do já longínquo de 1989, em Veiga de Lila (Valpaços), quando cerca de mil habitantes subiram os montes para arrancar um eucaliptal instalado pela Soporcel numa área de 200 hectares, resistindo ao aparato policial, não é de todo despicienda.
Quem “prometeu” o fogo poderá, eventual e politicamente falando, arder nele, ainda que de forma lenta e apurada.
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