Alfredo Soares-Ferreira *
“Se a liberdade significa alguma coisa, é sobretudo o direito de dizer aos outros o que eles não querem ouvir”
George Orwell, “Ensaios Escolhidos”, 2016
Será de equacionar, em primeira instância, se tem algum sentido a aplicação da construção interrogativa, ou, pelo contrário, se será mais assertivo afirmar a expressão de forma peremptória, querendo com isso dizer o quanto custa a vida humana na sociedade actual. Ao colocar a interrogação pretenderemos respostas simples, tal como “custa muito ou custa pouco”, “não custa nada”, “não tem custo”, ou, no limite, “custa X, um valor determinado, em moeda corrente”. Quando o afirmamos, estamos a concluir um facto. E, como tal, acabamos concluindo que a exclamação “quanto custa ser humano…” é um dado infelizmente adquirido nos tempos que correm.
No ano 2021, um conjunto de economistas brasileiros, analisando os riscos que as pessoas estão voluntariamente dispostas a expor-se e o quanto elas deveriam receber para correr esses riscos, chegariam a um valor concreto para “medir” a vida humana, na casa dos dez milhões de dólares. Comparem este “mísero” valor com os milhares de milhares de milhões injectados na segurança da Europa, em armas, munições e equipamentos. Ou como outros tantos (milhares de milhares de milhões) dados a Israel para promover o extermínio em massa de mulheres, crianças e homens palestinianos. A irrelevância da vida humana parece ser o mote dos dirigentes irresponsáveis que nos são impostos, na podridão das “democracias ocidentais”, faróis mais que apagados da civilização e do modo de vida que nos dizem “…temos que defender”.
O sociólogo espanhol Manuel Castells salienta, num capítulo da sua obra “Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet” onde fala de dignidade e violência, dizendo claramente ser necessária a instituição de um “dia da fúria”, um acto de reivindicação por mais e melhor dignidade e alimentação, com movimentos que se opõem às actuais políticas económicas e à corrupção como forma de governação. Poderá (este dia) constituir uma base de trabalho para configurar um movimento global anti-capitalista e de rejeição dos seus modelos de governação, através da dominação? Aliás, considerar a auto-organização popular como base para o desenvolvimento da luta de classes é um pensamento fundamental (ainda hoje) para uma melhor compreensão da dinâmica dos movimentos sociais.
O capitalismo fanático do século XXI apostou em introduzir uma ideia de não-felicidade nos cidadãos, a ponto de induzir a noção de contentamento ao pouco que cada um possui, na suposta medida de que mais não é possível, uma inevitabilidade pérfida, uma vez que nas últimas décadas se tem verificado um aumento escandaloso de fortunas vindas do nada. E dessa inevitabilidade se vai alimentando um sistema, ao ponto, ironia suprema, de o (ainda que magro) crescimento económico significar mais pobreza, mais miséria e, consequentemente, mais exclusão. Uma outra ironia, que não passa de uma armadilha em que alguma Esquerda vai tropeçando, é que o sistema capitalista pode ser democratizado e melhorado, quando na verdade os factos mostram exactamente o contrário. A ideia de felicidade é possível desde que o ser humano se consiga libertar de saberes preconcebidos que o impossibilitam de se relacionar de uma forma diferente com o mundo. Um mundo, ou melhor, este mundo, em que a teia, tecida e montada, da propaganda, constitui o valor máximo a que o ser humano pode aspirar, dentro das “restrições” estabelecidas, afinal a prioridade atribuída à “defesa e segurança”, uma hipérbole de sentenças falaciosas que domina o pensamento ocidental e que impede qualquer outra ideia de progresso social. Ao mesmo tempo que maioria dos cidadãos está preocupada com a subida de preço do leite e do pão e do aumento desmesurado das rendas na habitação e nos transportes, os poderes instituídos, indiferentes às injustiças sociais, cortam nos impostos das grandes empresas e dos “jovens empreendedores” e continuam a cavalgar para um abismo, em que os primeiros a cair são aqueles que trabalham e que produzem riqueza.
Particularmente em tempo de festas natalícias, em que se pregam as “virtudes” da solidariedade e da compreensão, os apelos que marcam a época continuam a ser os mesmos de sempre, na caridadezinha bafienta dos cabazes podres dos “bancos alimentares”, alimentados pelos grandes produtores e distribuidores, precisamente os mesmos que promovem as desigualdades sociais e que levam o cidadão incauto a aderir, dando um pouco de que não têm aos desgraçadinhos do costume, a mais perigosa mentira disfarçada de verdade.
O poeta e ensaísta polaco Zbigniew Herbert, candidato ao Prémio Nobel de Literatura em 1991, escreveu um poema, a que chamou “Relatório do Paraíso”, onde se pode ler, “No paraíso a semana de trabalho tem trinta horas / os salários são mais altos os preços descem continuamente / o trabalho físico não cansa (a gravidade é menor) / (…) / a vida no paraíso é melhor do que em qualquer outro país”. A única forma possível para que o ser humano não constitua um custo, mas que seja capaz de adquirir a leveza da dignidade, é promover a tal revolução que transforme a multiplicidade de países no “paraíso” de que fala Herbert. Há quem a designe revolução a nível mundial. Coisa natural, para uns, o “inferno socialista” anunciado, para outros. O que será difícil de rejeitar é a justeza que traria à imensa maioria que arrasta hoje a servidão e a iniquidade.
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