Processo Goldman: Justiça, Política e o Poder da narrativa no Cinema

Por Raquel Azevedo *

O Processo Goldman” é um filme francês de 2023, dirigido por Cédric Kahn, que mergulha nos bastidores de um dos julgamentos mais controversos da história recente da França: o segundo julgamento de Pierre Goldman, ativista de extrema esquerda acusado de uma série de crimes nos anos 70, incluindo o assassinato de duas farmacêuticas durante um assalto mal sucedido. O longa, construído quase inteiramente no ambiente do tribunal, combina elementos de drama jurídico e thriller político, questionando as fronteiras entre justiça, ideologia e verdade.

Pierre Goldman, figura enigmática e provocadora, era filho de imigrantes judeus poloneses e militante do movimento comunista. O filme retrata a complexidade de sua persona: ao mesmo tempo intelectual, rebelde, agressivo e brilhante. Ele admite parte dos crimes que lhe são imputados, mas nega categoricamente sua participação no duplo homicídio, tornando o julgamento um campo de batalha moral e ideológica. O processo é revisitado num momento político tenso, em plena década de 1970, num contexto de polarização extrema entre direita e esquerda, racismo estrutural e questionamentos sobre o funcionamento das instituições democráticas.

Com uma narrativa quase documental, O Processo Goldman se destaca por seu rigor formal. Kahn opta por uma abordagem sóbria e claustrofóbica, limitando-se quase inteiramente à sala do tribunal, onde o jogo retórico entre defesa, acusação, juiz e testemunhas ganha contornos de espetáculo. O uso do tempo real e a fidelidade aos autos do julgamento original intensificam o impacto dramático do filme, conferindo autenticidade às falas e uma tensão crescente à medida que o destino de Goldman se aproxima do veredito.

O filme também levanta questões universais e atemporais. Até que ponto o preconceito político ou étnico influencia uma decisão judicial? A justiça pode realmente ser cega num sistema moldado por pressões sociais e mediáticas? E qual é o papel do indivíduo que se recusa a ser domado por convenções e expectativas sociais, mesmo quando isso lhe custa a liberdade – ou a vida?

A performance de Arieh Worthalter no papel de Goldman é um dos pontos altos da produção. Com intensidade e nuance, ele constrói um personagem contraditório, que ora suscita empatia, ora antipatia, mas nunca indiferença. A atuação reforça a ideia de que, mais do que um julgamento penal, o processo Goldman foi também um julgamento da própria França: de suas feridas coloniais, de sua relação com a imigração, da luta de classes e do legado da resistência.

O Processo Goldman é mais do que um filme de tribunal; é uma reflexão poderosa sobre a justiça como construção social, sobre as narrativas que moldam a opinião pública e sobre o papel da memória histórica. Num tempo em que o revisionismo e a desinformação ameaçam reescrever o passado, obras como esta convidam ao pensamento crítico, ao confronto com as ambivalências humanas e ao reconhecimento de que, por vezes, o veredito mais importante não é o que está nos autos, mas o que ecoa nas consciências. 

[O Processo Goldman (Le Procès Goldman), drama, 2023. Realizador: Cedric Khan, com Arieh Worthalter, Arthur Hahari e Stéphan Guérin-Tillié. Prémio do Júri Lisbon Fest 2023]

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Raquel Azevedo
* Raquel Azevedo é técnica multimédia, produtora, activista sindical e cinéfila.

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