Este tempo dos inefáveis debates

Alfredo Soares-Ferreira *

Falar dos temas escolhidos, ou talvez não. Concentrar, ou tentar concentrar, a nossa atenção, alguém que se exprime, ora com vigor, ora com desdém, que mostra uma face carinhosa ou cruel, que se descai de quando em vez, consoante a prestação do adversário. Esta poderia ser a imagem dos debates com que somos brindados e que, pela sua inefabilidade, podem ter os seus amantes, particularmente naqueles que os promovem e que encaixam mais algum lucro com a subida das audiências. A figura que surge como “moderador” parece, pelo estatuto que lhe é outorgado, aspirar ao poder detido pelos sujeitos intervenientes, de tal forma é a sua acutilância para com quem se apresenta a votos. Para dourar a cena em que pretensamente se debate, surgem os ditos “comentadores”, oriundos de uma bolha que é porta giratória de burocratas, que se escondem frequentemente atrás de um escudo protector, que nem sempre protege e muitas vezes representa um muro opaco e intransponível. A cena montada nas televisões é um palco que detém uma espécie de controle parental, sem pai à vista e sem ter conhecido qualquer mãe.

Por mais que os debates televisivos se considerem como um mal necessário, a verdade é que são o reflexo da degradação da política e de uma deficiente e enviesada forma de informação aos cidadãos. Ao apresentarem-se como uma forma de esclarecimento para que o voto seja mais sustentado, o seu formato mediático assume o espectáculo em vez da promoção da reflexão sobre temas ou conteúdos. Nas raras vezes em que tal acontece, numa tentativa de o candidato tentar passar alguma ideia, é invariavelmente interrompido pela figura que parecer querer ficar com o protagonismo e se sobrepõe ao discurso do candidato. Assim se distorce por completo a “comunicação democrática”, como é defendida por Habermas, na sua teoria da acção comunicativa, onde ressalta a necessidade de um debate pautado pela racionalidade discursiva, algo que é frequentemente comprometido pela lógica do entretenimento das televisões. Habermas via a esfera pública como um espaço de debate livre e racional, onde os cidadãos discutem assuntos comuns sem coerção estatal ou mercantil. Todavia, considera também que, na actualidade, ela sofre uma “colonização” pelos interesses do Estado e do mercado e que é um instrumento de dominação que fragmenta a experiência colectiva, capaz até de transformar revoltas em produtos consumíveis. Na mesma linha de Habermas segue o escritor e cineasta francês Guy Debord, cujos textos foram inspiração para as manifestações do Maio de 68 em França. Debord edita, em 1967, “A Sociedade do Espectáculo”, uma obra de crítica teórica sobre consumo, sociedade e capitalismo e onde se fala na debilidade espiritual, nas esferas públicas e privadas. Este Autor considera os debates na televisão como o apogeu da política- espectáculo, com os candidatos e serem transformados em imagem-fetiche, onde a aparência e a retórica oca e vazia superam qualquer ideia ou projecto político. Assim se transforma o cidadão num consumidor, um espectador passivo, perfeitamente alienado por uma encenação que começa no acto do debate propriamente dito, prolongando-se pela opinião dos comentadores e estendendo-se nas redes sociais, para o bem ou para o mal do dito “debate”. Quando já foi assumido como “normal” viver-se em tal sociedade do espectáculo parece restar apenas uma pequena janela para “espreitar” novos caminhos e ensaiar novos processos.

O compromisso político dos actores em disputa vai ser colocado em linha de espera permanente, por força das circunstâncias. Na verdade, nunca é o tempo de apresentar programas, projectos ou propostas, uma vez que o debate se transforma numa arena de luta simbólica, onde a linguagem e a imagem são armas de dominação, como sustenta o sociólogo francês Pierre Bourdieu. Para além de as televisões privilegiarem candidatos com uma certa postura e elocução, em vez da substância política, a medição comunicacional impõe uma agenda própria, que selecciona de forma oblíqua o que se deve debater, marginalizando os temas e conteúdos que os cidadãos gostariam de ver debatidos. Nesta envolvente, as pessoas e grupos mais desfavorecidos perdem-se no universo espectacular das televisões, marginalizados que se sentem na sua condição. É nesse sentido que vai a análise de Bauman, para quem a “liquidez” da política se reflecte na fragmentação dos debates televisivos, onde o compromisso político é transformado numa efémera estória.

ou, o que vai dar ao mesmo, uma sequência de conflitos dramáticos em grande escala. Os debates televisivos contribuem, neste formato e nesta conjuntura, para a contaminação do espaço público. Bourdieu vai ao ponto de afirmar que o debate perde a sua função deliberativa, para se tornar num ritual vazio que reproduz a dominação simbólica.

As análises que opõem debates de qualidade a espectáculos vulgares poderão ser insuficientes, na medida em que será difícil neste momento, perante a falta de preparação dos actores, arquitectar um modelo capaz de contrariar a contaminação. Se fosse possível criar agenciamentos imprevisíveis capazes de gerar rupturas, poderíamos chegar a um estádio intermédio onde uma rede de actores humanos e não-humanos, incluindo pessoas, câmaras, algoritmos e formatos de tempo, estabelecesse as interacções necessárias para fabricar um produto não-tóxico. Um processo de hibridização onde os diferentes actores, jornalistas, políticos, comentadores e algoritmos fossem capazes de produzir em conjunto narrativas mais próximas da expectativa dos cidadãos eleitores. Dessa forma, os inefáveis debates poderiam ser substancialmente mais interessantes e produtivos.

About the Author

Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

Be the first to comment on "Este tempo dos inefáveis debates"

Leave a comment

Your email address will not be published.


*