Por Alfredo Soares-Ferreira *
Poderá invocar-se a subtileza do Poder, nas cidades deste País, na perspectiva de ser possível sinalizar algo que eventualmente nos escapa, entre a memória e o desejo? Talvez, se imaginarmos uma qualquer Zirma, a cidade onde tudo se repete, levando o viajante a acreditar que cada gesto é reproduzido infinitamente. Invocamos “As cidades invisíveis”, obra notável do escritor e jornalista italiano Italo Calvino, de 1972, dedicada, no entender do Autor, como “…um último poema de amor às cidades”. Na verdade, a ficção, que envolve, ao longo do livro, o diálogo entre Kublai Khan e Marco Polo, transporta-nos a Veneza (a cidade de Marco Polo) e à percepção que estas cidades são, na verdade, fragmentos daquela. Se Zirma existe, então o que conta é a representação de uma geografia em que não é a veracidade dos relatos que importa, mas a verdade conceptual que eles carregam. Ou seja, a Cidade só ganha existência quando o Poder é relativizado e pouco conta num mundo que caminha em direcção à ruína. E, se isso é verdade, inferimos a possibilidade de, por um lado contribuir para a sua queda mais rápida e de aproveitar, por outro lado, a brecha que pode conduzir à tomada do Poder nas cidades.

O catálogo que nos é ofertado pela grande maioria das candidaturas abre com sonantes e vazios títulos, lembrando palavras de ordem como, “Gaia sempre na Frente” (na frente de quê?), ou “Porto Somos Nós” (nós, quem?), lutando entre si pelo burlesco mais conseguido. Se lermos os programas, uma tarefa pouco aconselhável, improvavelmente esclarecedora, deparamos com esta asserção “Portugal não pode parar”, exemplo de como o PSD vê a “corrida” ao ataque frontal ao mundo do trabalho “…governámos com sentido de urgência e com foco nos problemas reais”, descodificando (ou não) quais são os tais “problemas” e qual é a “urgência”. Sempre confiando que a linguagem é um meio fiável, sobretudo quando é tão precisa como nos exemplos citados, vamos entendendo a sombra da ruína e da entropia que paira sobre quase todas as cidades. Vamos ainda reconhecendo, com desejo e nostalgia, que as cidades são, muitas vezes, projecções dos nossos desejos mais profundos e da saudade de algo que talvez nunca tenhamos tido. E assim, lamentando que muitas das possibilidades que desejaríamos nunca serão possíveis sem uma transformação completa, radical e substantiva.
As cidades de hoje não têm visibilidade, nem transparência. Nelas reinam o cinzentismo assustador dos burocratas, o arrivismo dos oportunistas e a bajulação dos interesseiros. Nelas se cultiva um poder efectivo que, na maior parte das situações, se auto-define como “servidor de todos” e do bem-comum. Um poder que navega constantemente entre a ambição de transformar a “cidade invisível” dos seus projectos e a “opacidade” dura dos constrangimentos financeiros e legais que diz lhe serem impostos. Ao contrário das cidades de Calvino, as cidades actuais são fechadas e avessas à reflexão. Se nos questionarmos sobre o que fizeram às nossas cidades, onde vão desaparecendo as livrarias e as tertúlias e em que abundam os guetos onde os livros estão misturados com rabanetes e produtos de limpeza, talvez possamos considerar que precisamos de encontrar um refúgio, desmontando a ideia idílica do poder local próximo e reenquadrá-la através de uma lente de crítica política e económica.
O antropólogo e cientista político norte-americano James C. Scott na sua obra, dedicada à política comparada, fala em “armas dos fracos“, como práticas do dia-a-dia para corroer o poder instituído. Na sua obra “The Art of Not Being Governed: An Anarchist History of Upland Southeast Asia“, de 2009, fala-nos da “zomia”, termo utilizado para designar uma vasta região montanhosa do Sudeste Asiático Continental e da China, cujos povos “escaparam” activamente da construção do Estado. Eles são uma “cidade oculta” por excelência, de comunidades que escolheram o anonimato geográfico para preservar a sua autonomia, uma materialização evidente do conceito de não ser governado, de se tornar “invisível” ao Estado, um refúgio criado intencionalmente. Também no México, o filósofo e activista Rafael Guillén Vicente, mais conhecido como Sub-Comandante Marcos, criou uma espécie de “zomia moderna“, uma zona de autonomia de longa duração com controle territorial explícito, o Exército Zapatista de Libertação Nacional. A recusa da governação estatal significa apenas que as comunidades desenvolvem os seus próprios mecanismos de tomada de decisão, justiça e organização social, livres do controlo de um governo central. Privilegiam uma consciência cultural e implícita e supõem a autonomia como um modo de vida, uma declaração intencional, um acto de insurgência consciente. Significam, para além da resistência à civilização burguesa, a criação de modos de vida, economias, estruturas sociais e culturas, adaptadas a um verdadeiro projecto de autonomia.
O conceito de “poder improvável” vem da Antiguidade Clássica, das peças de Aristófanes, que atestam o poder de acção direta e de imaginação política das pessoas comuns. A comédia grega dava voz ao demos, ao povo comum, com toda a sua irreverência, sabedoria prática e desconfiança em relação aos poderosos. A luta pelas “cidades invisíveis” é, portanto, tão antiga como a própria civilização. Se voltarmos a Calvino, temos porventura o melhor exemplo de uma bem-sucedida “cidade invisível” da história, que durante mais de dois milénios, praticou com sucesso a arte de não ser governada.
Se escolhermos ser governados, então saibamos os limites do poder real, o designado “poder autárquico”, tido como o poder mais próximo dos cidadãos, um nível de governação que influencia mais directamente o ambiente físico e social onde as pessoas vivem. Que, tendo limites conceptuais e políticos, “escolhe”, não só quem gere os serviços do dia-a-dia, mas quem moldará o rosto da Cidade, residindo aqui porventura a chave da escolha. Uma escolha.

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