Alfredo Soares-Ferreira *
O mundo actual, pleno de perfeição, é uma combinação sublime de partnerships, leaderships e joint venture, com o devido approach. São startups, com multitasking e um adequado target, temperado com muito know-how, decisões com deadline e ASAP (As Soon As Possible) e, apoiado por potenciais leads, sempre com feedback, ainda que não tenha tido um insight. Mesmo que perdidos alguns pormenores, parece que vivemos uma outra realidade, que pouco ou nada tem a ver com a nossa vida e com os legítimos anseios das pessoas envolvidas. A “perfeição” insuportável, ligada aos fenómenos intrincados da chamada “liderança”, constitui hoje uma fonte inesgotável de disparates, mas com seguidores indefectíveis, que passam grande parte do seu tempo a tentar convencer os outros da sua predisposição para a chefia natural e, claro, “democrática”. Assim se fazem os empreendedores de boa cepa e se enchem os corredores do Poder. Uma expressão muito em uso, nos tempos que correm, é “banir”, um verbo defectivo, por não possuir todas as formas verbais, não sendo assim possível conjugá-lo em todas as pessoas, tempos ou modos. Mas funciona e a cultura neoliberal conjuga-o frequentemente, com a intenção deliberada de arrumar a um canto qualquer propósito de contrariar o que é dito, com uma “perfeição” intencional. Nem sempre assim foi assim, no pretérito, mas pensa-se que assim será no futuro. Diga-se de passagem, que, para uma boa utilização da língua portuguesa, se deve utilizar o pretérito mais-que-perfeito do indicativo para citar uma acção que ocorreu antes de uma outra passada. Ou para indicar um acontecimento passado situado de forma incerta. E, já agora, que a dita (boa) utilização da língua não se compadece com os citados termos em inglês, destinados sobretudo a anestesiar e a estupidificar. Não só a língua, como tudo o resto.
Nada é mais perfeito que governar sempre em crise. A tese em apreço é subscrita por alguns pensadores contemporâneos, como o filósofo Pierre Dardot e o investigador de história da filosofia e da sociologia Christian Laval, ambos franceses. O que define esta forma de governar é o seu “apetite” pelo aprofundamento das crises económicas e sociais que cria. Segundo os Autores, o que acontece é que, em vez de questionar a lógica que provocou as crises, é preciso intensificar essa mesma lógica e procurar reforçá-la indefinidamente. Por exemplo, se a austeridade gera um défice orçamental, é preciso acrescentar uma dose suplementar. Ou se os serviços públicos já não cumprem a sua missão, é preciso esvaziar esta última de qualquer conteúdo e privar os serviços dos meios que precisam. Ou, para chegar ao ponto central desta crónica, se um corte de impostos para os ricos ou empresas não dá os resultados esperados, é preciso cortar ainda mais. Analisando a proposta da Direita para o Orçamento de Estado, constata-se precisamente isso mesmo, quer na ênfase que é dada à baixa de impostos para as (grandes) empresas, quer no pretenso apoio aos “mais jovens” com a medida inacreditável do denominado IRS jovem, que vai beneficiar, em primeira instância quem tem mais rendimentos, quer finalmente no apoio aos arrendatários da modernice irritante do “alojamento local” e que vem “expulsando” milhares de cidadãos dos centros das grandes cidades. Os autores referidos afirmam, a propósito, sobre a “perfeição” do neoliberalismo, que “em nome da razão suprema do capital”, foram atacados “os próprios fundamentos da vida social, do modo como havia sido formulado e imposto na época moderna, através da crítica social e intelectual.”
Os portugueses “são incapazes de revolta e de agitação”
Fernando Pessoa
Mais perfeito que qualquer pretérito é o inenarrável Moedas. Este “servidor público” como gosta de se intitular foi condecorado no ano passado por Marcelo, com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, possivelmente pelos inestimáveis serviços prestados ao grupo Suez Lyonnaise des Eaux, aos bancos Goldman Sachs, Deutsche Bank, Eurohypo Investment Bank, à consultora imobiliária Aguirre Newman Cosmopolita e à empresa de gestão de investimentos Crimson Investment Management. E tudo isto lhe terá dado a mais elevada capacitação para dirigir a primeira Câmara do País, onde esta semana inventou mais uma “perfeição”: um “hotel social” para 29 pessoas “em situação de especial vulnerabilidade”, na Mouraria, uma decisão que já foi duramente atacada pelo Presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, como publicidade barata e de inaceitável justificação.
Há um pequeno escrito de Fernando Pessoa, “Os Portugueses”, onde o Autor analisa a “perfeição” típica dos seus concidadãos e onde conclui da necessidade urgente (na época final dos anos 20 e no início dos anos 30 do século passado) de o País precisar de indisciplinadores, justificando que os portugueses “são incapazes de revolta e de agitação”. E, de passagem, aproveita para deixar uma farpa aos que, na sua opinião, têm imaginação a mais, aqueles onde reina o predomínio da imaginação sobre a inteligência: “a deficiência imaginativa que caracteriza os imaginativos em demasia”. Nos tempos que correm (possivelmente até correm demais) deparamos com uma “perfeição” de outro tipo, aquela onde a mediocridade se sobrepõe a tudo o resto e onde o lixo intelectual predomina sobre todas as formas criativas, de carácter social, cultural e artístico, particularmente visível no baixo perfil intelectual dos actuais dirigentes e governantes. O exemplo de um primeiro-ministro que diz que só aceita “medidas a bem de Portugal” é deveras elucidativo da “adaptabilidade instintiva” que Pessoa definia como permanentemente instintiva e instável. Se lhe fora negada credibilidade, aqui na versão mais-que-perfeita do indicativo, passaríamos certamente adiante, sem problemas de maior.
(Imagem: Arte sobre foto do jornal LPP, com edifício citado)
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