O nosso articulista dedicado à geopolítica entra a partir desta edição em modo “retiro sabático”, certamente para recarregar as baterias. Estará de volta às nossas páginas em Setembro. Ficamos com a sua análise sobre este nauseante período de mudança política, neste cantinho do velho continente.
Por Alfredo Soares-Ferreira *
O cenário de profunda incerteza política, económica e social, instalado num contexto de fragmentação partidária, será passível de análise, atendendo à habitual desconfiança nas instituições e na sempre crescente crise de representatividade. O resultado das eleições precipitou as catástrofes anunciadas e mesmo as não-anunciadas, atirando para o fundo do cesto os maiores problemas com que se debate a vida cidadã. Apenas se fala, salvo as sempre reportadas honrosas excepções, se há governo (ou não) e os “arranjos” eleitorais possíveis para compor a burocracia estatal e governamental. Arrisca-se a afirmação “poderá ser pior do que se imagina”, uma vez que a capacidade de reconstruir consensos e enfrentar desafios como a desigualdade e as crises sistemáticas, determinam se o País irá superar uma era de incerteza, ou sucumbirá a novas crises.

Num artigo publicado neste Jornal a 28 de Dezembro de 2023, dei conta da posição do sociólogo polaco Zygmunt Bauman sobre a questão da incerteza, nos designados “tempos de interregno”, entre o que não é mais e o que não é. A afirmação de Bauman é substancialmente política e tem uma dimensão que ultrapassa todas as barreiras. O historiador italiano Enzo Traverso coloca os “espaços de incerteza” como conceito central da sua obra “O Passado, Modos de Usar”, de 2020, afirmando que eles acontecem quando o significado dos eventos históricos é disputado e redefinido, frequentemente em contextos de crises globais, guerras ou rupturas que corroem a concepção progressista da história, criando áreas de instabilidade onde a memória colectiva e a escrita histórica se cruzam com as políticas de memória. Na visão de Traverso, o historiador opera dentro dessa incerteza, sendo ao mesmo tempo um observador erudito e, em muitos casos, um participante das lutas do presente. E destaca ainda a porosidade das fronteiras entre o académico e o militante, uma ideia enriquecida através da sua proximidade com o sociólogo brasileiro Michael Löwy e com o pensamento de Walter Benjamin, a crítica romântica da modernidade. E diz também que esses “espaços”, longe de serem obstáculos, representam oportunidades para uma abordagem crítica que desafie narrativas simplistas e reconheça o papel activo do presente na construção do passado. Entretanto, mais recentemente, o médico e autor húngaro-canadiano Gabor Maté, aborda a a incerteza como um fenómeno ambivalente, que tanto pode ser “paralisante” (gerador de doença), quanto “transformador” (impulsionador de mudanças). Desta forma, no terreno da luta pela emancipação, no sentido da procura pela autonomia, justiça social e ruptura com estruturas opressoras, a incerteza assume um papel dialéctico, com implicações positivas e negativas. Na obra “O Mito do Normal”, de 2023, Maté fala em possíveis danos na saúde física e mental dos cidadãos sujeitos ao arbítrio, na sociedade doente, subordinada a uma cultura tóxica que gera a doença.
Falar de incerteza é o mesmo que falar de uma ausência de confiança, seja por falta de informação, ambiguidade ou variabilidade. Não é seguro dizer apenas que incerteza é o oposto de certeza, uma vez que esta implica confiança completa num resultado, facto ou evento, sem margem para qualquer dúvida. No caso da incerteza, esta pode variar de intensidade, nomeadamente desde a simples dúvida à mais completa ignorância. A certeza tende a ser mais absoluta. Assim sendo, a incerteza pode ser vista, em contextos sociais, como um estado natural do conhecimento humano e não apenas como a negação da certeza, envolvendo nuances como probabilidade, subjectividade e até aceitação da dúvida como parte do processo de entendimento.
Muito embora a realidade subatómica seja distinta da social, uma vez que naquela a incerteza é intrínseca e probabilística e não apenas uma falha de informação, há um paralelo possível de estabelecer. O princípio de Heisenberg, da incerteza ou indeterminação, um conceito fundamental na mecânica quântica, estabelece a impossibilidade em determinar com precisão absoluta a posição e o momento linear de uma partícula ao mesmo tempo. Essa incerteza não é uma limitação tecnológica, mas uma propriedade fundamental do universo. Na ciência social existe sempre ambiguidade, imprevisibilidade ou falta de clareza sobre comportamentos, decisões ou resultados. Os “espaços de incerteza” podem incluir situações como crises políticas, transições económicas, conflitos culturais ou momentos de ruptura social, onde as variáveis são difíceis de prever ou mesmo medir com exactidão. Traçando o paralelo, obviamente não-literal, entre as ciências física e social, encontramos factores como o livre-arbítrio, interações não lineares e informações incompletas que criam limites para a previsibilidade, semelhante à incerteza quântica. No caso das sucessivas crises que “abalam” o capitalismo, nem sempre é fácil prever o comportamento das pessoas e até das instituições, de que é exemplo comprovado o “comportamento” dos ditos mercados financeiros. E, enquanto na física quântica, a incerteza é uma propriedade fundamental da natureza, nas ciências sociais, a incerteza decorre muitas vezes de limitações práticas, como dados incompletos, complexidade ou subjectividade, e não de uma lei universal. Finalmente, enquanto os sistemas quânticos são controlados e seguem regras probabilísticas bem definidas, os sistemas sociais são abertos e influenciados por variáveis externas imprevisíveis.
A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, no seu romance “Inventário de Sonhos“, de 2025, explora a incerteza não como uma fraqueza, mas como um elemento intrínseco à condição humana, especialmente para mulheres que navegam entre culturas, identidades e pressões sociais. Numa recente entrevista, Chimamanda disse “Sou forte, mas dentro dessa força há espaço para a incerteza“, sintetizou bem a abordagem, que permeia tanto a sua escrita quanto a sua reflexão pessoal. Para esta Autora, a incerteza não é um vazio, mas um “espaço de possibilidades” literárias, políticas e existenciais, sendo o seu trabalho um desafio, onde a ideia de que clareza e a certeza são sinónimos de força, propondo que a verdadeira emancipação surge quando abraçamos a complexidade do “não saber“. Como ela mesma afirma, “A vida é intrinsecamente incerta, e é nessa ambiguidade que encontramos a liberdade de reimaginar o mundo”.
No caso presente da situação política do nosso País, poderemos estar perante uma transição após as eleições legislativas que implique um efeito disruptivo com a fragmentação que decorre dos resultados obtidos. A formação e composição do novo Governo, pode ser condicionada pela pressão social por um lado e pela interferência da política externa, por outro. Todos esses factores podem alterar o conceito burguês designado “normal funcionamento das instituições”, semelhante ao efeito da medição quântica. Mesmo reconhecendo que a incerteza social é mais contextual e menos fundamental do que a quântica, a definição de espaços de incerteza pode determinar alterações favoráveis à luta social e ajudar a construir alternativas que se assumam como determinantes.
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