Espaço e territórios da presidência

Alfredo Soares-Ferreira *

Na história recente do nosso País estabeleceu-se a eleição directa para a presidência da República, norma exarada na Constituição desde 1976. É atribuída aos cidadãos a capacidade de eleger alguém que deverá defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República e ser o garante do “regular funcionamento das instituições democráticas”. Não governa, mas proporciona governação a outrem. Existe um espaço e alguns territórios da presidência que podem ser explorados, numa perspectiva criativa e na interpretação lata ou restrita da lei fundamental. A um ano da realização do acto eleitoral para a presidência manifestam-se alguns interesses por parte de possíveis candidatos. A alguns deles convirá possivelmente marcar terreno, uma circunstância que também é reportada ao reino animal com a consequente interpretação. Em ambos os casos fará sentido tal asserção, na medida em que está em jogo uma “conquista”. O trabalho paralelo pertence à comunicação social e subentende um conjunto de etapas e procedimentos, consubstanciados em iniciativas globais, como a promoção, divulgação e propaganda, ou iniciativas particulares, como entrevistas, sondagens, tempos de antena e outras.

A propósito das questões relacionadas com a presidência, o jurista Pedro Selas editou, neste mês de Janeiro, um livro a que chamou “Pequenos Ensaios de uma Presidência para um País sem Amos“. É uma obra interessante, uma vez que coloca questões um pouco fora dos habituais campos de análise e parte da base conceptual que reporta ao carácter universal da presidência, onde os cidadãos podem escolher directamente a personalidade que será a primeira figura do Estado. Daí a consideração que o Presidente pode protagonizar aspirações populares de mudança (um País sem amos), sendo elencadas algumas, em áreas diversas. Vejamos a perspectiva do Autor quanto a alternativas, sempre possíveis na política. Uma vez que a presidência detém o comando das forças armadas, poderia “ajudar favoravelmente e proteger com força a luta dos trabalhadores e a sua emancipação…”. E ainda, na chamada de atenção, “A condecoração de uma alta burguesia em detrimento das pessoas que…trabalham muito, cuidam dos seus e do ambiente comunitário, sem a vida lhes proporcionar grandes regalias.”

Partindo do princípio que a República necessita de presidência, cria-se no texto constitucional o espaço a ela consagrado. O que não significa que se seja o escopo, existindo sempre a possibilidade de uma qualquer interpretação ampliativa, cujo alcance se desconhece, mas que pode eventualmente ser encontrado em casos semelhantes. Na história recente do País, o melhor exemplo terá sido a presidência de Jorge Sampaio, que priorizou sempre os aspectos sociais e culturais, pautado por uma acção de teor humanista e civicamente mobilizadora.

Os vastos territórios abrangidos pela presidência estendem-se desde a chefia das forças armadas à capacidade, conforme a Constituição, de “Declarar o estado de sítio ou o estado de emergência”, ou mesmo de “Declarar a guerra em caso de agressão efectiva ou iminente”, passando pelo poder de dissolução da Assembleia da República. A lei fundamental exara outras funcionalidades específicas como, “Presidir ao Conselho Superior de Defesa Nacional”, “Submeter a referendo questões de relevante interesse nacional”, ou “Promulgar e mandar publicar as leis…”. Há ainda um outro “território”, na órbita da presidência, mapeado como “órgão político de consulta” e designado por Conselho de Estado, a quem compete o pronunciamento sobre actos específicos da esfera própria. A constituição deste órgão implica membros eleitos na Assembleia e outros por inerência de funções. A margem de liberdade deste território está na nomeação de membros designados pelo próprio Presidente, margem que define intrinsecamente o tipo de personagem que ocupa o cargo. O território onde possivelmente pode ser encontrada uma dimensão simbólica da presidência é da representação das designadas “unidade do estado” e “independência nacional”, as quais constituem o entorno necessário para a questão da “soberania” e que naturalmente determinam posicionamentos inerentes à política externa. Daí que a “navegação” por estes (e outros) territórios defina a presidência e o estatuto de qualidade exigível a um candidato. O que se tem visto, até hoje, quando se fala em personalidades que aspiram à disputa, é a fragilidade, a irrelevância e a mediocridade, de mãos dadas com uma inaceitável pobreza de pensamento. Se juntarmos as aspirações da clientela burocrática e basbaque da grande maioria dos comentadores, os que nos “ensinam” a pensar, temos o caldo ideal para mais uma eleição dirigia e orquestrada pela propaganda e pelo pensamento único.

Dizer que se impõe, a um ano de distância, uma clarificação do espaço e territórios da presidência, não é irrelevante. Significa que (ainda) há tempo para encontrar novas formas de fazer política, com uma linguagem diferente e com propósitos que contrariem frontalmente a vulgaridade. Que sejam capazes de erradicar os lugares-comuns e as tretas costumeiras, elevando o nível de debate, centrando-o na cidadania, na educação, cultura e formação, introduzindo estas vertentes fundamentais na análise dos reais problemas que afectam a grande maioria dos cidadãos, os trabalhadores.

Italo Calvino diz-nos que existe um “peso de viver” na “Insustentável Leveza do Ser” de Kundera e que está em todas as formas de opressão, na “densa rede de constrições públicas e privadas que acaba por envolver toda a existência com nós cada vez mais apertados.” A libertação aqui citada “…uma Presidência para um País sem Amos” poderá adquirir um valor acrescido se formos capazes de lhe atribuir mais do que um simbolismo.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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