Alfredo Soares-Ferreira *
A cor cinza que perturba a mente e os espíritos moderados deve contrastar hoje com o vermelho vivo dos corações inquietos, aqueles para quem a perturbação e a insubmissão são muito mais que palavras. Ao vermelho dos cravos irão juntar-se em Abril, o verde dos campos e o azul libertado dos censores e os sons, os muito sons de um grito colectivo de quem escolheu ser livre. Ao golpe de estado, necessário e urgente, irá suceder a Revolução que pretendia devolver direitos, liberdades e garantias e transformar estruturas conservadoras em organismos vivos ao serviço dos cidadãos. A Constituição da República após sete revisões desde 1976, ostenta, no seu preâmbulo, “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

Depois da caminhada revolucionária, onde se instituíram o controle operário, a reforma agrária, onde se ocuparam casas devolutas e empresas, um processo revolucionário que, em curso, significou um momento alto da que se poderá considerar a última Revolução Socialista do século passado. Quando em 1974, José Niza escreveu “Quis saber quem sou/O que faço aqui…”, provavelmente não adivinharia que a sua letra, musicada por José Calvário e interpretada por Paulo de Carvalho, vencedora do Festival da Canção, viria a ser a primeira senha do golpe militar. Quando lhe chamou “E depois do adeus” não estaria decerto a ser premonitório quando a certa altura do poema sentencia “E depois de nós/O dizer adeus, o ficarmos sós”. Na verdade, assim foi, após o vinte e cinco de um Novembro, que hoje a “reacção” em coro quer festejar. E aqui se lembram as palavras do historiador, e ensaísta de Trinidad e Tobago Cyril L. R. James, “Jacobinos Negros” (no original de 1934, “The Black Jacobins”), quando afirmou que “Um burguês só está derrotado quando foge”. Verdade se diga que, os que fugiram depois de Abril, acabaram por voltar depois de Novembro, com benesses e prebendas, alguém um dia irá responder por isso(?). Faz todo o sentido que este autor venha à cena, uma vez que a obra relata minuciosamente a insurreição de escravos que expulsou os colonizadores franceses de São Domingos, antigo nome do Haiti. Naquela colónia, que era o principal parceiro comercial da França, a população negra que gerava a riqueza, era dez vezes maior do que a dos brancos. Aí, os ideais da revolução na metrópole, que pregava “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” ecoaram nas lideranças dos escravos rebelados, os jacobinos negros, no ideal de construir um país independente que se aliaria à França revolucionária em pé de igualdade, uma espécie de “posto avançado” dos ideais revolucionários no continente americano.
A rejeição da austeridade económica e cultural, tem sido uma bandeira, desde finais de 1975, até hoje. Um dos seus grandes intérpretes foi José Mário Branco. No ano 1979, publica “FMI”, uma fala de vinte minutos, uma cena fantástica, um Homem em palco com a sua viola e a sua catarse, onde se evoca a Revolução e o desatino após Novembro de 75, “Neste cais eu encontrei a margem do outro lado/Grândola Vila Morena. /Diz lá, valeu a pena a travessia? /Valeu pois.” O título, “FMI, Fundo Monetário Internacional”, é uma sátira mordaz e violenta às dinâmicas de poder económico global e à submissão do País a interesses externos, indo muito além, ao abordar a alienação social e a perda de identidade colectiva. O texto que vai em crescendo, até um final libertador, onde nos apela e convoca: “A minha arte é estar aqui convosco e ser-vos alimento e companhia na viagem (…) Agora é que nós vamos mostrar a esses gajos todos, pá! Agora é que nós vamos mostrar que não somos parvos, pá! (…) Que somos gajos que não desistem, pá! Que somos gajos que lutam, pá! Que somos gajos que cantam, pá! Que somos gajos que sonham, pá! (…) E vamos lá, pá! Vamos cantar, vamos lutar, vamos sonhar, vamos fazer, vamos ser solidários, pá! Porque isto é nosso, pá! Porque isto é do povo, pá! Porque isto é Portugal, pá!”
Se a Liberdade tem sons e cores, terá obrigatoriamente a dança como complemento natural na vivência da festa libertadora. Recorda-se a famosa pergunta de Zorba, “Dance? Did you say, dance?”, quando Basil lhe pede que o ensine a dançar, no filme de 1964, “Zorba, o Grego”. A dança da libertação é referida também, a propósito de revoluções, pela escritora e activista lituana Emma Goldman, quando relata que num baile foi repreendida por um camarada por gostar de dançar, ao que lhe terá respondido “Se eu não puder dançar, não quero fazer parte da tua revolução“. O que se dançou em Abril com as canções revolucionárias de todo o mundo e com as da resistência, afinal foi uma revolução para se ver e ouvir, o êxtase dos corpos, um permanente convite para pintar e cantar a liberdade, em todas as direcções. Jorge de Sena havia dito, no ano de 1958 que não haveria de morrer “…sem saber qual a cor da liberdade”.
Não esquecemos, como o Zeca nos ensinou, que “Somos filhos da madrugada” e que “Pelas praias do mar nós vamos/À procura da manhã clara”. Testemunhas da Revolução, estamos no caminho do mar, à procura da melhor onda, para cavalgar.
Sim, “Somos nós os teus cantores/Da matinal canção/Ouvem-se já os rumores/Ouvem-se já os clamores/Ouvem-se já os tambores”.
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