Casa sem Gente, Gente sem Casa

Escolhas políticas nos imóveis devolutos

Por Victor Pinto *

As causas da crise habitacional portuguesa não se explicam apenas pela escassez física de imóveis, mas sim como produto de escolhas políticas deliberadas. Enquanto milhares de famílias se vêem forçadas a abandonar as cidades onde construíram as suas vidas, aceitando condições habitacionais indignas ou deslocando-se para periferias cada vez mais distantes, o país acumula mais de 723 mil imóveis devolutos. O contraste é particularmente agudo nas grandes metrópoles: Lisboa e Porto concentram, respectivamente, mais de 48 mil e 25 mil habitações vazias. Este fenómeno estende-se às cidades de média dimensão, onde a emigração persistente, a insuficiência de oportunidades laborais e a fragilidade das estruturas sociais agravaram a situação. Em Beja, por exemplo, em apenas quatro ruas centrais, contabilizam-se 63 casas devolutas, relatava-me um amigo que se dedicou a contá-las uma a uma ainda esta semana. Muitos destes edifícios possuem não apenas valor funcional, um valor de uso para o qual foram construídos, mas também arquitectónico e histórico. Localizados em zonas centrais já dotadas de infra-estruturas, permanecem inutilizados, objectos de uma especulação imobiliária que prospera precisamente pela inacção deliberada do poder público. Estabelece-se, assim, um paradoxo perverso: não faltam habitações, falta vontade política para as tornar acessíveis.

As autarquias e o Estado central dispõem de instrumentos legais significativos — posse administrativa, reabilitação coerciva, expropriações por utilidade pública — mas raramente os operacionalizam. O que se tem privilegiado, sistematicamente e beneficiando apenas alguns, é a financeirização da habitação, concedendo benefícios fiscais generosos a grandes investidores. A dimensão desta opção política é mensurável: entre 2020 e 2023, 265 fundos imobiliários acumularam 1,7 mil milhões de euros em lucros isentos de impostos. Simultaneamente, o governo, com a anuência do PS e o apoio da IL, prepara-se para solicitar à Comissão Europeia autorização para aumentar a despesa em armamento, relegando para segundo plano respostas estruturais à emergência habitacional (e outras). A questão que se impõe é incontornável: é eticamente sustentável canalizar recursos públicos para a indústria bélica, alimentando o infame complexo militar-industrial, quando uma parte significativa da população não tem acesso a habitação condigna? Se existe possibilidade orçamental para reforço em armas que, note-se, exigirá endividamento adicional, não deverá existir primordialmente para garantir direitos fundamentais, consagrados na Constituição?

Um programa nacional de reabilitação habitacional apresenta-se não apenas como imperativo social, mas também como opção economicamente racional. Reabilitar é, comprovadamente, 30 a 40% mais económico do que construir de raiz. Adicionalmente, esta estratégia valoriza o património histórico e urbano existente, minimiza o desperdício de recursos e preserva a identidade morfológica das cidades. A integração dos imóveis reabilitados num programa de arrendamento acessível, com valores ajustados aos rendimentos efectivos das famílias, transformaria o investimento público inicial em política social auto-financiável a médio prazo. Complementarmente, impõe-se a revitalização do modelo cooperativo, alternativa comprovadamente eficaz em décadas passadas em Portugal, mas também actualmente em países como a Áustria e a Dinamarca, onde tem contribuído para reduzir custos habitacionais, fortalecer comunidades e contrariar dinâmicas especulativas.

O cerne da questão transcende o aproveitamento de imóveis devolutos — trata-se de definir o modelo socioeconómico que se pretende para o país. Aceitaremos que os centros históricos se convertam em zonas exclusivamente turísticas e fontes de rendimento passivo para fundos de investimento? Ou exigiremos cidades habitadas, socialmente diversificadas e economicamente inclusivas? A resolução desta crise exige mais que produção legislativa — requer implementação efectiva e, quando necessário, confronto com interesses estabelecidos. O direito à propriedade não pode sobrepor-se absolutamente ao direito constitucional à habitação. O Estado dispõe de mecanismos legais para intervir; resta determinar se possui determinação política para o fazer. As cidades não podem continuar reduzidas a vitrinas desabitadas, nem os bairros transformados em espaços de segregação silenciosa. O momento actual não admite contemporizações. Exige, outrossim, escolhas políticas claras e consequentes.

About the Author

Victor Pinto
Nascido 1976, na invicta cidade do Porto. Professor de português e inglês no ensino secundário. Assessor parlamentar na AR entre 2015 e 2020. Candidato pelo BE à Câmara Municipal da Póvoa de Varzim em 2013 e 2017. Criador e colaborador do blogue “O Navio de Espelhos” e membro fundador da Plataforma por um Partido dos Trabalhadores.

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