Alfredo Soares-Ferreira *
Nunca é demais pensar e reflectir a Cidade. Quer na perspectiva do território, um espaço que habitamos e partilhamos, quer ainda na acepção filosófica e antropológica do imaginário civilizacional que contém atributos que são património, arquivo e acervo social e comunitário. Somos cidadãos porque habitantes da Cidade. Somos cidade, porque usufruímos dela, enquanto cidadãos. Uma das principais características das cidades sempre foi a de um espaço colectivo onde se faziam trocas, como o comércio dos produtos rurais que tradicionalmente eram produzidos e cultivados na periferia e vendidos no coração da Cidade. O desenho das cidades era assim feito, em função da geografia do terreno, do clima e da disponibilidade de água potável para consumo humano. Hoje, a terminologia neoliberal supõe “camadas” para a Cidade, designada como “inteligente” e naturalmente amarrada a uma concepção tida como inovadora. Camadas como “solo”, “sub-solo”, “infra-estrutura tecnológica” e “Internet das Coisas” representam apenas designações vazias e que apenas têm como objectivo a mistificação da realidade social, bem mais complexa e contraditória.
Em termos tecnológicos, o conceito de “camada” é tratado com o significado que lhe é conferido como parte ou estrato da realidade geográfica de uma determinada área, semelhante a uma legenda num mapa em papel. As camadas num mapa de estradas são, para além das estradas e vias, parques nacionais, rios, fronteiras e definem propriedades adicionais como outras fontes de dados. Nos anos sessenta e setenta do século passado, primeiro na academia e posteriormente no sector empresarial, foi estudada, desenvolvida e posta em prática a tecnologia dos Sistemas de Informação Geográfica, que contém ferramentas que proporcionam uma visão global dos dados existentes, em termos de padrões, relações e situações e que permitem, através da sua visualização, a tomada de decisões fundamentadas, quer em termos conceptuais, quer na perspectiva concreta da localização espacial. Hoje em dia estes sistemas são fundamentais no apoio à decisão e na racionalização de sectores estratégicos da vida social, como transportes, saúde pública, gestão ambiental e agricultura.
Todas as marcas e lesões, termos usados na dermatologia, podem sê-lo também no âmbito dos fenómenos sociais da Cidade.
Na vida social e política da Cidade existem e subsistem camadas diversas que se poderiam abordar na óptica dermatológica, como as camadas da pele humana. Tal como a epiderme ajuda a manter a pele flexível, agindo como uma barreira protectora contra bactérias e fungos, a camada mais superficial da Cidade, a “crosta” que nos é dado observar, comporta-se como uma protecção metafórica contra as invasões dos estranhos e diferentes que pretendam entrar. Caminhando para dentro, a derme, uma camada espessa de tecido fibroso e elástico, pode ser assimilada ao centro organizacional da Cidade, qual “manto” onde reside uma estrutura de decisão e Poder. Tal como os vasos sanguíneos da derme ajudam a regular a temperatura corporal, o centro decisor ajuda (ou deveria ajudar) a manter o equilíbrio entre as diversas sensibilidades sociais. Mais fundo na pele existe uma camada de gordura que ajuda a isolar o corpo do calor e do frio, um “núcleo” com um conjunto de valores e princípios, que, na Cidade, serve (ou deveria servir) como camada protectora e capaz de armazenar energia suficiente para suportar convulsões ou dirimir conflitos. Uma das lições a retirar das eventuais semelhanças, ou aproximações, entre a fisiologia e a antropologia poderá ser a da chamada antropologia pragmática, como a definiu a professora britânica Alix Cohen, uma filósofa kantiana que estudou o que designa como antropologia fisiológica. Todas as marcas e lesões, termos usados na dermatologia, podem sê-lo também no âmbito dos fenómenos sociais da Cidade. Poderíamos eventualmente juntar-lhes ainda outros, como cicatrizes, pústulas, máculas ou nódulos, como manifestações de pele susceptíveis de eventuais erupções, que constituem afinal todas as contradições sociais que sentimos e com que convivemos, no dia a dia da Cidade. Sabe-se, entretanto, que o organismo corporal, bem como o organismo cidade, não podem ser vistos unicamente com a justaposição dos seus membros, órgãos e sistemas de órgãos, mas como um sistema total articulado e centralizado de todas as suas partes, uma gestalt, que implica que nos centremos necessária e essencialmente na interacção entre os diversos componentes, asserção tão válida no corpo humano como no “corpo cidade”.
Nas entrevistas que tem dado à comunicação social, o jornalista e escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte fala muito sobre as cidades, particularmente sobre Lisboa, que é, para ele, significativa em termos de uma evolução negativa, culpabilizando o designado turismo de massas, que considera como um dos principais problemas para a cultura hoje em dia. As cidades perderam as suas características e estão a tornar-se iguais, diz Pérez-Reverte, não acreditando em qualquer solução possível para a descaracterização evidente, um sinal dos tempos na sociedade actual, onde a Cidade perdeu a sua individualidade e mesmo uma certa racionalidade. Na verdade, o que realmente não interessa ao turismo de massas é a produção cultural nem, muito menos, o conhecimento da história e do património da Cidade.
Muitos autores escrevem sobre a Cidade. Poucos o fizeram da mesma forma que Ary dos Santos, no poema que se chama simplesmente “A cidade” e que foi incluído no albúm de Zeca Afonso, “Contos velhos rumos novos, do ano 1969”. Nele se diz que “A cidade é um poro, um corpo que transpira” e ainda no que é uma realidade tão dura que nos devia pôr a pensar, quer nas camadas da Cidade, quer no papel que o Cidadão, habitante da Cidade, tem (ou deveria ter): “A cidade é um céu de palavras paradas/a palavra distância e a palavra medo…”.
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