Análise espectral da indiferença

Alfredo Soares-Ferreira *

Íamos, com efeito, mudando mais frequentemente de país do que de sapatos, através das lutas de classes, desesperados, quando havia só injustiça e nenhuma indignação…”
Extracto de “Aos que virão depois de nós”, Bertolt Brecht (Tradução de Manuel Bandeira), 1939

A contracção do espaço público, entendida como a redução ou deterioração de áreas destinadas ao uso colectivo, seja por meio de políticas de controle, privatização, degradação física, ou mudanças nos padrões de uso, deixa antever resultados pouco recomendáveis. A segregação social, a insegurança, a criminalização da pobreza, a homogeneização cultural e a perda de identidade, são alguns dos efeitos que, aliados a uma quebra de vitalidade cultural, produzem e reproduzem a indiferença, no uso e fruição da Cidadania. Habermas analisaria, em 1962, na sua obra “A Transformação Estrutural da Esfera Pública”, o declínio da esfera pública burguesa e as suas implicações para a democracia, entendida como função deliberativa.

O culto da indiferença está hoje bem patente na percentagem de eleitores que usam o direito de voto. O clima de medo instalado na Europa produz a indiferença generalizada perante a carência e a multiplicação de casos de hostilidade e discriminação. Existe hoje um desencanto, um descontentamento evidente pelas políticas desenvolvidas que, aliado a uma deficiente politização dos cidadãos, induz uma indiferença generalizada e traduz, em termos eleitorais, elevados número da abstenção. Tal acontece em Portugal desde 1975, onde a percentagem foi de 8,5%, até ao último acto eleitoral, onde esse número atingiu os 40,2%, passando por anos como o de 2019, onde o número de abstencionistas subiu para 51,43%. E o exemplo das eleições europeias de 2024, onde o valor percentual da abstenção subiu a 64%. Mas a indiferença ultrapassa o acto eleitoral, apenas o momento em que o cidadão é “convidado” a manifestar a sua vontade. A indiferença alastra a todos os níveis de uma sociedade de paz podre, marcada pela injustiça, opressão e totalitarismo, que geram a indiferença em vez da revolta necessária. Da mesma forma que o poema de Brecht, que na época fugia do nazismo e se dirigia às gerações futuras com um pedido de compreensão e um sinal para os tempos sombrios, transmite hoje a angústia diante da brutalidade capitalista a que se assiste com passividade colectiva. O poema é pois um convite à acção, um alerta para que as gerações futuras não repitam os erros do passado.

Utilizamos a asserção “Análise espectral da indiferença” para, em termos de metáfora, dissecar a apatia, o desinteresse e a desconexão dos eleitores em processos democráticos. A análise espectral é uma ferramenta essencial para extrair informações críticas de dados complexos, aplicável em diversas áreas do conhecimento. Esta tipologia de análise, muito comum na ciências experimentais, pode aplicar-se aos movimentos sociais, como metodologia para decompor um sinal ou conjunto de dados nas suas componentes de frequência, permitindo identificar padrões, periodicidades e características que não são evidentes no domínio do tempo. Assim, neste contexto eleitoral, a indiferença pode ser examinada como fenómeno multifacetado, cujas “frequências”, os factores sociais, políticos e culturais compõem um espectro complexo. A desconfiança estrutural (baixa frequência) e os medos pontuais (alta frequência) exigem respostas diferenciadas, desde políticas de transparência até campanhas de educação cívica. Para fazer um diagnóstico preciso, deveriam combinar-se meios tradicionais com meios que a ciência moderna oferece, por exemplo, sondagens credenciadas, no primeiro caso e meios de detecção de desinformação, aproveitando a inteligência artificial, no segundo.

Identificando as frequências da indiferença, encontramos a fadiga eleitoral e abstenção, a desinformação e polarização, a desconfiança nas elites políticas e a falta de identificação ideológica. A percepção de que o voto em partidos pequenos tem menos impacto desincentiva a participação, especialmente em círculos eleitorais menores, onde o número de deputados é reduzido, facto que reforça a sensação de que o sistema eleitoral não reflecte plenamente a diversidade de opiniões, induzindo mais indiferença.

Autores clássicos, ainda sem os instrumentos necessários, como Marx, Durkheim ou Max Weber desenvolveram teorias e estudos concretos que podem ser analisados hoje com o auxílio da análise espectral. Autores mais recentes, como o sociólogo e filósofo polaco Zygmunt Bauman, autor do conceito “modernidade líquida”, ao descrever a fluidez e instabilidade das relações sociais na pós-modernidade, contribuiu para aperfeiçoar os ciclos de instabilidade social, e da indiferença, como fenómeno particular.

Se o futuro das sociedades ocidentais estiver algures entre a apatia e a ansiedade, estará criado eventualmente um paradoxo, produzido pela interacção entre indiferença e medo. O que é um facto, é que enquanto muitos eleitores se afastam do processo político por desilusão, outros são mobilizados por narrativas que exploram inseguranças. E ambos os fenómenos corroem a participação cívica consciente, essencial para uma democracia saudável. A indiferença reduz a exigência sobre os partidos, permitindo que as campanhas, como facilmente se vê, se limitem a promessas vagas ou ataques mútuos, um espectáculo por vezes deprimente e acéfalo. O medo, por sua vez, favorece o voto reactivo, que prioriza o simples protesto em detrimento de projectos de longo prazo e da mudança radical necessária. Para reverter este ciclo, se tal for possível ainda, é necessário promover uma cultura de participação activa, com iniciativas como sistemas de resposta rápida contra a desinformação e o aumento da literacia política. As campanhas de dinamização cultural dos tempos da Revolução seriam decerto um excelente auxiliar. Uma campanha em massa nas redes sociais para contrabalançar o “poder” da extrema-direita será uma forma de combater a indiferença. E o medo, principal combustível do populismo.

No contexto destas eleições, a indiferença manifesta-se na abstenção e no “cinismo funcional” dos eleitores, que, na perspectiva da Direita, pagam contas, toleram elites e sonham com mudanças que não impliquem rupturas reais. A este propósito veja-se o que escrevia em 2019 o jornalista e sociólogo polaco Sławomir Sierakowski, que é o líder do movimento de intelectuais, artistas e activistas de esquerda Krytyka Polityczna: “…abandonadas pela democracia, as maiorias seguem exemplo dos políticos, renunciam ao futuro e votam segundo interesses cada vez mais mesquinhos e oportunistas”. E diz mais, “…todos nós nos comportamos como egoístas esclarecidos. Embora saibamos lutar contra as desigualdades, elas estão aumentando. O autoritarismo (…) lida melhor com a pobreza do que a democracia. As sociedades ricas são pouco sensíveis a guerras ou crises de refugiados.” Hoje em dia, em particular nas eleições do próximo 18 de Maio, em que o cidadão se sente mais utente do que agente, o voto está transformado num acto puramente mecânico.

Voltando a Brecht, inspirador da insubmissão e da revolta, poderemos talvez aprender mais um pouco e, pelo menos, encontrar na educação dos vindouros as respostas que não encontramos em nós: “Vós, que surgireis das marés / Em que nos afogamos, / Pensai, quando falardes das nossas fraquezas, / Também nos tempos sombrios / Em que vivemos.”

Resistindo à indiferença, recusando o medo.

About the Author

Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

Be the first to comment on "Análise espectral da indiferença"

Leave a comment

Your email address will not be published.


*