Alfredo Soares-Ferreira *
Uma asserção muito em uso no português corrente que tanto pode significar uma simples liquidação de contas pendentes ou, na acepção figurativa, uma qualquer represália (ou vingança) proveniente de um ajuste de contas, no sentido estrito do termo. Ambas derivam de “acertar” e, como tal, o “acerto” faz todo o sentido. Procuraremos tratar aqui, no âmbito desta crónica, quer a mera opção contabilística, quer o figurado acerto, de características eventualmente vingativas. A vulgaridade inerente a “…chegou a hora do acerto de contas”, pode conduzir a uma pergunta, afinal quem decide sobre tal ou se é a Justiça que se vai intrometer e optar por um dos lados da balança.
É conhecido o fascínio dos neoliberais pela contabilidade pública. A teoria das “contas certas” não passa de um acerto de contas. E não se trata aqui propriamente de matemática contabilística, mas sim de uma operação burocrática destinada a subtrair valor ao trabalho, para o entregar ao capital, promovendo desta forma o tal “acerto”, absolutamente necessário para a tentativa de perpetuação de um sistema que tem por base a usura e a exploração. As questões são sempre as mesmas, ou seja, a de saber quem paga a conta e uma outra, a de saber quem presta contas. A lógica perversa da dominação dos “mercados” preside e orienta as políticas económicas e, por sua vez, estas determinam as políticas sociais e a sua progressiva contracção. Assim, a prestação de contas acaba por significar, sempre e em definitivo, a inclinação da balança para o lado da minoria que se apropria da riqueza produzida por quem trabalha. Quando as dificuldades se avolumam, como aconteceu durante a pandemia e as guerras, os burocratas de serviço virão dizer que “…estamos todos no mesmo barco”, na verdade, uns na primeira classe e a maioria no porão a racionar a água e os alimentos.
Episódios recentes mostram uma certa tendência para relevar algumas questões laterais do Orçamento de Estado e da sua aprovação, com o beneplácito do Partido Socialista. E a relação natural entre a sua execução, com a consequente aplicação de políticas concretas. A proximidade das eleições para a Presidência da República determina a necessidade de marcar terreno dos potenciais candidatos. A troco da promessa de não deixar cair um governo, por falta de alternativa, e manifesta vontade de não discutir o essencial, permite-se uma descida de impostos que beneficia as grandes empresas. E permite-se também uma progressiva perda do poder de compra dos trabalhadores, privilegiando prémios em vez de aumento de salários. Ao mesmo tempo, o Governador do Banco de Portugal vem alertar para a possibilidade de aumento do défice se as políticas do Governo continuarem na mesma linha, ao fim e ao cabo, na linha de um Orçamento liquidacionista. Se lembrarmos que o Governador é um dos apontados como candidato à Presidência, percebemos o sentido da narrativa, que afinal mais não é que o jogo viciado do arremesso entre duas das facções da burguesia dominante e que nada tem a ver com a defesa de direitos e garantias dos cidadãos. É nessa lógica que se deve entender a troca de galhardetes entre Governo e Banco de Portugal, apenas a artificialidade propagandística do espectáculo, onde não se debatem conceitos, ideias ou mesmo regras, mas sim um conjunto de percepções, baseadas em indicadores perfeitamente falíveis.
O filósofo e matemático alemão Edmund Husserl, fundador da fenomenologia, disciplina que investiga a experiência, introduziu uma metodologia para retratar a percepção consciente dos sujeitos. Acabaria, como professor e mestre, por influenciar Heidegger, tendo este promovido com ele uma espécie de acerto de contas, em torno da noção tradicional de verdade. Husserl estabelece uma diferenciação entre ”conteúdo ideal”, essencial e necessário e “conteúdo real”, contingente e aleatório. A percepção, uma das armas características da análise política do século XXI, ainda que contenha um valor paradigmático, resulta de uma relação entre objectos, coisas e o nosso corpo. Possivelmente, numa época particularmente sensível da política georreferenciada, a percepção adquire uma importância acrescida, que produz muitas vezes os resultados mais indesejáveis. Nessa circunstância, os sujeitos conscientes serão apenas marionetes das suas percepções e não sujeitos activos, implicados na transformação social.
Perceber não é exactamente o mesmo que pensar. Todavia, a percepção implica necessariamente uma construção mental, que serve, entre outras coisas, para formular juízos e posições. Aconselha-se então uma melhor adequação à realidade, tarefa decerto difícil para quem não faz mesmo a mínima ideia do que isso significa. Não há acerto de contas que resista a tamanha iniquidade.
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