A entropia da luta proletária

Alfredo Soares-Ferreira *

Apesar de a questão formulada se colocar desde meados do século XX, é no Dia do Trabalhador que alcança uma dimensão maior, por ser um dia tradicional de luta por direitos sucessivamente perdidos. Começando pelo aspecto simbólico, poderá dizer-se que falar em “luta proletária” no primeiro quartel deste século, parece quase uma heresia, tal é a força dos sucessivos reformismos que contribuíram, acima de tudo, para um certo imobilismo. Todavia, foi a notável capacidade do capitalismo em absorver e neutralizar a energia do proletariado a grande responsável pela diluição do ímpeto revolucionário, ao “oferecer” um estado social aparentemente estável, para além de aceitar algumas das reivindicações dos trabalhadores. A ilusão travou a marcha do proletariado a nível mundial pela emancipação e pela destruição do estado burguês, criando uma entropia, metáfora da dispersão de energia em sistemas fechados, isto é, a uma dissipação da força transformadora em reformas que perpetuam o sistema.

Para entender o que é hoje a luta dos trabalhadores em todo o mundo é necessária uma compreensão da dialéctica das transformações sociais, das mudanças, sistémicas ou não, do capitalismo. Uma das formas de interpretar a entropia é a contradição interna do próprio capitalismo, ou seja, a exploração do trabalho pelo capital. É a exploração sistemática e cada vez mais aprofundada que continua a gerar conflitos que renovam a luta proletária. Um bom exemplo é dado pela generalização da automação e da inteligência artificial, ao deslocarem milhões de trabalhadores, criando novas formas de precariedade, que entretanto abrem espaço para questionar a própria lógica do trabalho sob o capitalismo. A entropia, portanto, não é um fim, mas um processo que pode levar a saltos qualitativos na consciência e na organização. Será nas questões organizativas que hoje prevalece o que o professor e jornalista brasileiro Aristides da Silveira Lobo avisava, nos anos trinta do século passado, a propósito da crescente burocratização que conduz à perda de dinamismo do movimento operário. O economista belga Ernest Mandel aborda as questões organizativas do movimento operário no século XX no que classificou de “capitalismo tardio”, um conceito introduzido pelo Autor em 1972, querendo com isso significar uma saturação da produção impulsionada pelo desenvolvimento tecnológico e pela crescente automação e ainda pela financeirização da economia. Na sua obra de 1991, “Poder e Dinheiro”, Mandel analisa a burocratização e a alienação relacionando-as com a entropia devida à fragmentação das organizações proletárias. Foi Mandel que alertou para as consequências da greve geral belga no inverno de 1960/61, que posteriormente o filósofo francês, de origem grega Cornelius Castoriádis, viria a considerar como o evento mais significativo do movimento dos trabalhadores após a segunda guerra mundial.

Recordar hoje, que a luta de classes em Portugal não pode ser separada da luta contra a opressão imperialista e a burguesia nacional, poderá ser uma das formas de projectar o movimento operário para uma dimensão conceptual que contraponha versões desgarradas dos interesses dos trabalhadores. Constatar nos dias de hoje a entropia da luta proletária não significa apenas uma decadência. Em todos os sistemas complexos, a desordem pode ser um prelúdio para a reconfiguração. A luta proletária, mesmo fragmentada, gera crises que desafiam a ordem capitalista, com exemplos significativos como os protestos globais contra a desigualdade, as greves nas economias de plataforma (motoristas “uberizados”), as lutas por justiça climática, mostram que a energia proletária, embora dispersa, não se extingue. Essas crises podem ser vistas como momentos de “entropia criativa“, onde podem (e devem) emergir novas formas de resistência e, consequentemente, de organização. Contrapor sinergia à entropia, ou seja, uma interacção positiva entre elementos de onde pode resultar um efeito mais significativo do que a simples soma das partes. Obviamente que a transposição para a sinergia implica organização e trabalho coordenado. Existe hoje a necessidade urgente de contrariar a fragmentação e a perda de ímpeto revolucionário. E ainda de canalizar essa energia caótica para uma ordem emancipatória, consciente de que, na história, a desordem frequentemente precede a transformação. Mesmo sabendo que a desindustrialização, a precarização do trabalho e a hegemonia neoliberal representam forças que “dissipam” a capacidade do proletariado de se organizar, a defesa de uma luta proletária contínua e global será a melhor resposta contra a estagnação e a acomodação reformista.

A afirmação “A crise histórica da humanidade reduz-se à crise da direcção revolucionária”, feita por Leon Trotsky em 1938, no “Programa de Transição”, parece continuar válida e actual. Entender a afirmação significa, por exemplo, perceber que a “entropia” da luta proletária decorre de falhas na vanguarda e não na classe trabalhadora. A entropia pode ser combatida, por exemplo, com “inovações estratégicas”, como sugere o filósofo francês Daniel Bensaïd, na sua obra “Marx para o nosso tempo: Aventuras e Desventuras de um Crítico” (no original, “Marx for Our Times”: Adventures and Misadventures of a Critique”), de 1995. Bensaïd foi um dos primeiros marxistas revolucionários a integrar a crise ecológica na sua análise, destacando a discrepância entre o tempo de mercado (de curto prazo e orientado para o lucro) e o tempo biológico (de longo prazo, ligado à sustentabilidade). Na sua abordagem realça como a globalização e a fragmentação social desafiam a luta proletária, retomando Marx como um pensador crítico que oferece ferramentas intelectuais para a luta social e a transformação global num mundo dominado pelo capital, um Marx capaz de habitar um mundo contemporâneo marcado por “contingência, emergência e temporalidades contraditórias”. Bensaïd, inspirado em Walter Benjamin, pensava numa postura dialética que reconhece as derrotas e incertezas da luta anticapitalista, mas recusa a resignação. A conhecida designação “melancolia de esquerda” representa a resistência ao capitalismo global, especialmente em tempos de crise ecológica e social e combina o luto pelas perdas históricas com uma “aposta” na possibilidade de transformação, enfatizando a contingência da história e a necessidade de acção estratégica.

O intelectual brasileiro Mário Xavier Pedrosa salientou, no seu tempo, a importância da cultura e da arte como ferramentas de mudança social e revolucionária, reivindicando a independência da arte em relação ao controle estatal e ao mercado e a sua capacidade para transformar a sociedade. Pedrosa sempre se interessou por movimentos de vanguarda e por expressões culturais que desafiassem a ordem estabelecida, como a arte proletária, o surrealismo e a arte indígena. Desafiador, explorou a arte como ferramenta de mobilização proletária, com a elucidativa divisa “Cultura e Revolução”. Se na cultura pode estar revolução, apostemos então nas duas, como forma de fazer renascer a luta proletária.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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