Territórios emocionais

Alfredo Soares-Ferreira *

“A cidade é um poro um corpo que transpira
pela palavra sangue pela palavra ira.”
A Cidade”, José Carlos Ary dos Santos, 1980

Uma das razões possíveis para a apatia generalizada que grassa nas sociedades modernas, nomeadamente nas ocidentais, flageladas pela crise permanente, será provavelmente a forma como as pessoas lidam com o ambiente circundante, ou, na inversa, como a organização da Cidade cerceia e oprime, restringindo o bem-estar pessoal e social e os acessos à cultura e ao lazer. Tais entornos compreendem as condições de vida básicas, na habitação, na saúde e na educação, direitos fundamentais que já deviam estar garantidos em sociedades que se auto-proclamam de “modernas” e “democráticas”. Qual a relação entre a quantidade de informação recolhida pelos nossos sentidos e as emoções? É uma questão que se pode e deve colocar, para entender melhor o comportamento individual e, por arrastamento, o social. Uma outra, concernente com a primeira, é conhecer de que forma os territórios se tornam emocionais, numa espécie de geografia de emoções, interpretada na perspectiva espacial, ou seja, da relação com os lugares. A introdução da subjectividade não invalida todas as considerações objectivas sobre a crítica social e a análise política subsequente.

Pensar a Cidade. Pensar de que forma o cada vez maior nível de ruído, oriundo do tratamento da informação e do cavalgar constante e permanente da propaganda, que obriga a estarmos atentos ao que não nos interessa, configura na verdade uma violência objectiva. A obstrução das vias de comunicação, o excesso de carros, a parafernália de luzes que tentam transformar artificialmente noites em dias, perturbam o descanso e introduzem um desequilíbrio entre o ser humano e a natureza. Merece estudo profundo a forma como a Cidade trata aqueles que considera “marginais”, um vasto leque altamente diferenciado que vai dos “desenquadrados” aos sem-abrigo passando por todas as categorias de cidadãos com restrições, limitações e deficiências. E ainda a consideração que se deve ter na forma como tomamos as nossas decisões num universo imenso de perturbações que a Cidade transmite. No limite, saber como usufruímos do espaço colectivo, que poder temos sobre ele ou a agressão que ele exerce sobre nós. Um projecto, que envolve o nosso País, designado eMOTIONAL Cities, teve o seu início em 2021, pretende “…mapear as cidades através dos sentidos” e ligar o ambiente urbano, a neurociência, a saúde e o bem-estar físico e mental. Termina neste mês de Fevereiro, o que se pode considerar uma investigação sobre planeamento urbano preventivo, no sentido de experimentar cenários e testar emoções, um projecto que envolve um consórcio com doze parceiros internacionais. Esperam-se conclusões que permitam a necessária intervenção, em favor das pessoas que habitam a Cidade.

O matemático e filósofo austríaco Kurt Gödel afirmou, nos anos trinta do século passado, que o mundo não é caótico e arbitrário e que a ciência mostra que reinam por toda a parte, a maior regularidade e a maior ordem, sendo esta uma forma de racionalidade. Há quem o coloque ao nível de Aristóteles, privou com Einstein e o seu nome fica na história e na filosofia da Matemática como autor do princípio da incompletude, isto é, aquilo que é ou está incompleto. Daí viriam a ser estabelecidos teoremas e corolários, que basicamente colocam em causa postulados tidos como absolutos e que pretendem demonstrar que dentro de um sistema de lógica formal existem teoremas que são indecidíveis. Ao reduzir toda a realidade à lógica, Gödel exclui a componente de emoção que dita de certa forma a nossa sobrevivência. Na verdade, se excluirmos a emoção à racionalização, poderemos entrar no campo da recusa e da inação. Porém, o contributo de Gödel foi muito positivo, ao demonstrar que havia problemas na matemática que eram impossíveis de serem resolvidos sem uma mudança estrutural. Da mesma forma que, na sociedade, há questões que nunca poderão ser resolvidas sem mudanças profundas e radicais.

Liuzhou Forest City, na China. Design de Stefano Boeri.

Nos territórios emocionais poderão acontecer verdadeiros choques emocionais. O cidadão diminuído, privado dos seus bens essenciais e a quem é subtraída a cidadania, entrará facilmente em choque emocional. O filósofo francês Gilles Deleuze, um investigador profundo de Espinosa, Kant e Nietzsche, haveria de publicar, em 1972, a conhecida obra “Anti-Édipo, Capitalismo e Esquizofrenia”, onde aborda, em conjunto com o psicanalista, semiólogo, e activista revolucionário francês Félix Guattari, temáticas diversas relacionadas com economia e arte, literatura e civilização, história e psicologia humanista, reportando ao desejo de realidade na sociedade capitalista. Na sua obra, os Autores dirigem-se “aos inconscientes que protestam” e procuram aliados, no que foi considerado um livro de ressaca, uma autêntica peça revolucionária e, na opinião de Rafael Trindade, psicólogo brasileiro e criador do site de filosofia “razão inadequada”, uma forma de psicanálise política, social e militante, na “superação de estruturas limitantes” para o homem e para o seu desejo.

Integrar o Cidadão, de forma consciente, no seu território emocional, parece ser uma tarefa necessária e militante. No fundo trata-se de o munir das ferramentas essenciais para uma tomada de decisão fundamentada, na sinuosa e enganosa engrenagem capitalista. Uma resposta possível será a Educação, porventura a “paixão” mais desejada e que decerto poderá proporcionar caminhos para a necessária organização. Compreender os mecanismos do poder burguês e interpretá-los, na sua essência castradora de vontade e de consciências. Tomar como seu o espaço da Cidade é o primeiro dos objectivos, para que seja possível geri-lo e controlá-lo. Ocupar a rua e converter a desobediência num princípio de resistência. Tornar a insubmissão a resposta adequada aos burocratas que gerem a Cidade e demonstrar a falência do seu projecto. Desenhar, na geografia complexa de afectos e emoções, a Cidade do Cidadão, com responsabilidade assumida no tempo e no espaço livre das amarras da propaganda e da opressão.

About the Author

Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

Be the first to comment on "Territórios emocionais"

Leave a comment

Your email address will not be published.


*