Alfredo Soares-Ferreira *
Tempo de descanso, com a lentidão necessária. Entretanto, registam-se algumas situações interessantes que relativizamos, porque o nível de interesse não atinge os mínimos de credibilidade basilar. Corre-se o risco, porventura desaconselhável, de um certo isolamento da consciência, uma espécie de solipsismo momentâneo, que pode induzir um certo cepticismo relativamente ao passado, com consequências imprevisíveis para o presente. A sensação é deveras preocupante, sobretudo quando tendemos a legitimar tudo à nossa volta.

Há, contudo, sinais de vida no sistema que nos formata, desde a notícia da iminente subida do preço do café, que faz parte da nossa existência cultural e simbólica. Ao que consta devido às designadas “alterações climáticas”, uma asserção assassina que dá para tudo, incluindo para a queda da bolsa de Tóquio e para as restrições impostas pela sempre presente “união europeia” a importações “indevidas” de café, como por exemplo, do Brasil e de Angola, países que não são bem vistos pela dita união.
Mas parecem ser os “mercados” que estão com problemas de humor. Citados pela grande maioria dos órgãos de comunicação social do Ocidente, que afirmam e declaram o não-optimismo dos mesmos, o que equivale a dizer que estão pessimistas, possivelmente irritados ou descontentes. Esta tendência, que leva a aparentar os referidos como pessoas reais, ajuda à criação de um ambiente deveras depressivo naquelas, muito difícil de reduzir, pela pressão sucessiva da “informação” neoliberal. O editor e gestor da equipe de mercados da CoinDesk, Omkar Godbole escreve, no início deste ano 2024, esta preciosidade: “Os Mercados financeiros podem estar excessivamente optimistas quanto à rapidez com que a Reserva Federal dos EUA (Fed) irá flexibilizar a Política através de cortes nas taxas de juro este ano, de acordo com a JPMorgan Asset Management.” Tal significa decerto um enorme alívio para os cidadãos, mesmo que não consigam descodificar a linguagem cerrada e estupidificante dos ditos mercados.
“Faltava-nos venerar mais, desejar mais, sonhar mais, fantasiar mais.”
Lamberto Maffei
O intelectual humanista da Renascença Erasmo de Roterdão cunhou a divisa Festina Lente, que, em português corrente pode traduzir-se, “apressa-te lentamente”. A ideia foi depois desenvolvida e adaptada, em termos práticos, no sentido de fazer devagar para executar um trabalho bem feito. Não valerá a pena, seguindo a ideia, andar muito depressa para conseguir um bom resultado. Devagar, que temos pressa, em tempo de polarizar ideologicamente, o tempo parece ser decisivo para concentrar o poder. A falta de força ou de estímulo para agir, que pode provocar alguma lentidão, é rapidamente transformada em vitalidade, com um dinamismo acrescido, quando um acontecimento nos desperta e nos transporta à acção.
É o que poderá acontecer se atentarmos nas declarações da senhora Ministra do Trabalho e da Solidariedade Social, que, na audiência parlamentar de 10 de Julho último, afirmou que os patrões “têm queixas devido à falta de trabalhadores” e que “sabemos que as pessoas recusam propostas de emprego com facilidade”, conforme nos dá conta António Garcia Pereira, em artigo assinado a 19 do mês passado. E onde assinala uma “muito curiosa coincidência de opiniões com os patrões” e ainda “…a estafada retórica de que todos os desempregados têm acesso ao subsídio de desemprego, os quais, por serem alegadamente de valor elevado, levam a que os trabalhadores rejeitem empregos dignos por ganharem mais com os subsídios do que se estivessem a trabalhar”, uma fantástica negação da realidade de que este Governo é assaz pródigo.

A propósito da divisa de Erasmo, a realizadora Cláudia Varejão, que é também argumentista, fotógrafa e professora, escreveu, em Maio de 2020, uma bela crónica a que deu o nome da divisa. Recordando o fresco de Lorenzo Sabatini no Palácio Vecchio em Florença, que assim se chama também, a Artista descreve-o exactamente: a figura de uma tartaruga no centro com uma vela de navegação presa na sua carapaça. E explica que a tartaruga é o símbolo do movimento lento e a vela representa a velocidade. E interpreta-a como a revelação de que “…andar mais rápido não significa mais conhecimento nem mais produtividade.” Lembrando Walter Benjamim, que dizia ser na quietude da alma que as ideias surgem, Claúdia diz-nos, em síntese, que é preciso “…privilegiar um tempo necessário para a reflexão, para o pensamento, para a contemplação e, se quisermos, para integrar o erro”, por ser aí “que as subtilezas e as verdades ocultas se podem revelar.” Relembra ainda o médico e cientista italiano contemporâneo Lamberto Maffei e a sua obra “Elogio da Lentidão”, quando reconhece o nosso cérebro como uma máquina lenta, para afirmar que “A nossa biologia é a do tempo, do sonho e do desejo. O cérebro não tem relógio. No mundo em que vivíamos – pois o dia de ontem afirma-se rapidamente como um passado distante – faltava-nos venerar mais, desejar mais, sonhar mais, fantasiar mais. Parece-me que são as qualidades de um pensamento mais lento que este momento histórico nos pede para recuperar. E não estou a falar de prazeres. Falo de valores.”
Defender então um pensamento mais lento, pode significar, antes de mais, uma atenção redobrada, uma reflexão profunda sobre as contradições que vamos anotando na vida e na política das sociedades, a começar pela nossa. Integrar valor nas considerações que fazemos. Para que as ideias surjam e tenham a importância que merecem, com leveza e com substância.
Em tempo de pausa, poderia ficar a sugestão de viajar até essa cidade inigualável que é Florença, entrar no Palácio Vecchio e, simplesmente, observar e pensar um pouco na imagem do fresco do pintor renascentista, que está na Salle des Cinq-Cents, uma sala monumental, que simboliza o poder da República Florentina.
Apressa-te lentamente.
Muito bem!