O Dia da Mulher é quando uma mulher quiser

Por Inês Moreira dos Santos *

Ainda que eu acredite que o dia da Mulher deva ser todos os dias, é importante que haja um dia em que só se fale da mulher. Para mais, porque durante o ano, só se houve falar de homens, e é isso que deveria mudar, e que este dia pretende reforçar. Longe das ofertas de descontos em produtos de beleza, e das estadias em hotéis, que enchem as nossas caixas do correio, com ofertas para este dia, estão as mulheres vítimas de violência de género, as mulheres que ganham o ordenado mínimo, as mulheres que são empregadas de uma casa e de um homem, que não é mais do que um adereço no que toca à limpeza da maioria das casas, um adereço no cuidado dos filhos, um adereço na cozinha com o trabalho doméstico todo o seu cargo. A mulher, sobrecarregada, com um emprego pago e outro por pagar, que quando casa, casa com um homem infantilizado pela sociedade. Aos homens é perdoado que saiam de casa, afinal têm uma carreira para construir. E se as mulheres também quiserem construir uma carreira, são insensíveis e ingratas e ambiciosas e sei lá mais o quê. É importante que se assinale a desigualdade existente, e também que se diga quem são os principais interessados na manutenção deste estado de arte.

O dia da mulher celebrou-se a 8 de março e nada melhor para chatear uma mulher que as notícias que têm saído: 15% dos portugueses acredita que a culpa é da vítima de abuso se ela estiver bêbada, 30% das pessoas acha que é bom um homem controlar o dinheiro da mulher. Não percam a esperança, ainda vamos ver “85% dos homens acham que mulher casada não deve usar mini-saias”. Continuam, muitos, a culpar a vítima da desigualdade de género. Incluindo pessoas que deviam defender as vítimas. “Ela é que escolheu o marido”, “Se leva porrada, saia da relação”, como se fosse simples alguém completamente dependente de um homem, a nível emocional e financeiro, sair de uma relação assim. “Se leva porrada, alguma fez”. É assim que estamos. É assim que vamos. É assim que quem manda no mundo – homens – quer que continuemos. E pelos vistos vamos piorar. “Nem todos os homens”, está bem, já sei. Mas a maioria.

A mentalidade do país ainda é tacanha, ainda é pequena, as mulheres ainda são culpadas de tudo e mais alguma coisa, e isso vê-se na inércia perante os casos de femicídio. As mulheres portuguesas, a maioria, ainda levam tudo ao seu colo, como se tivessem responsabilidade pelos filhos de outras mães e pais, esses que estavam ausentes de tudo o quanto é tarefas, e isto é um ciclo, e se sentem com uma responsabilidade sobre-humana. Não têm direito a ser normais, têm de ser super-heroínas. Pelo direito ao descamo, ao não fazer nada, à saúde mental e à liberdade para poder sentar-se no sofá! Porque é que é mal visto uma mulher chegar a casa e sentar-se no sofá, ao passo que se for um homem ninguém diz nada? Pelo direito ao ócio!

O Dia Internacional da Mulher, dia 8 de março, foi proposto por Clara Zetkin, em 1910, em Copenhaga, como um dia de manifestações anuais pelos direitos das mulheres. Em 1910 era preciso muita coragem para falar de direitos das mulheres, e, vários anos volvidos, ainda é preciso um bocadinho de coragem. Esta manifestação deve ser diária, os direitos das mulheres são os primeiros a regredir. Os direitos das mulheres carecem, na verdade, de muitas lutas futuras para se verem concretizados, e com o avançar da extrema-direita, que nos quer em casa, as coisas têm tendência a piorar. Não se trata apenas de direito a estar na rua, trata-se também do direito ao nosso corpo, e a fazer dele o que quisermos e de direitos laborais. A luta tem de ser contra o patriarcado.

A entrada das mulheres no mercado de trabalho tem aumentado, embora ainda seja bastante inferior à dos homens. As mulheres trabalham menos horas, com ordenados mais baixos e em posições menos importantes do que os homens. As mulheres têm filhos. Mas esses filhos são também dos homens. Exigimos repartição de tarefas domésticas. São mulheres quem, por exemplo, limpam os escritórios antes das 9 horas, e essas mulheres também tém filhos. São mulheres que são empregadas domésticas. As mulheres são a maioria em trabalhos precários. Parem as mulheres todas por um dia e vejam os efeitos. As diferenças presentes no mercado de trabalho devem-se aos papéis que tradicionalmente se atribuem a homens e a mulheres e que estão bem enraizados na sociedade. Aumentar as mulheres no mercado de trabalho é fundamental, até para a diminuir a dependência financeira dos homens e dar-lhes, às mulheres, mais liberdade. O trabalho doméstico é fundamental para o funcionamento do sistema económico, e este é um factor muito importante para que nada se mude. Quando falam em meritocracia, pergunto-me se as mulheres que ficam em casa a cuidar dos filhos, por exemplo, não têm mérito em suportar uma casa.

Vejo homens a comentar o corpo das mulheres, a objetificá-lo, a transformar a mulher numa coisa. Se somos magras, somos feias e podíamos comer mais. Se somos gordas, somos feias e podíamos comer menos. Vivemos toda a vida a pensar na aprovação exterior, e o tempo passa, e ela nunca chega. A menos que digamos que não nos importa a opinião de terceiros, porque não é ela que nos põe comida na mesa, nem é essa opinião que nos paga as despesas e menos ainda é essa opinião que nos faz feliz e sigamos a nossa vida sem nos importarmos com opiniões de terceiros. Façam o que fizerem, as mulheres serão sempre julgadas. Mais vale fazer o que nos dá na gana, sem querer saber das opiniões de terceiros, afinal não são eles que nos colocam comer na mesa, nem cuidam dos nossos filhos. De opiniões está o inferno cheio. Abaixo o patriarcado, e seremos todos mais felizes. Mas dizer abaixo o patriarcado é também dizer abaixo o capitalismo, e é aqui que a porca torce o rabo. A mulher sustenta o mundo capitalista, gera mão de obra, cuida do homem, então para quê mudar e dar mais tarefas aos homens?

Estas expectativas bafientas, e esta educação para esta expectativa, para a rivalidade feminina, para agradar a terceiros, que não nós próprias, sufoca. Existem várias ferramentas para combater as expectativas e a rivalidade, e uma delas é a sororidade. Se começarmos a unir-nos em vez de fazermos nós de juízes das outras, já é um passo. A sociedade patriarcal promoveu, desde sempre, a rivalidade feminina. Esta competição evidencia o machismo existente na nossa sociedade, enfraquecendo a luta pela igualdade de género, a luta pelos nossos direitos. Há algo que precisa ser dito: não estamos a competir umas com as outras! Não precisamos disto na nossa vida. E chegamos mais longe se nos unirmos. Vivemos num sistema patriarcal, não há volta a dar a isto, e é por isso que precisamos de sororidade. Abaixo as tricas e intrigas, e seguiremos unidas! Abaixo o olhar de lado para outra mulher! Abaixo os julgamentos a outras mulheres! Não vivemos a vida de mais ninguém, só a nossa, o que sabemos nós acerca das motivações de outra mulher? Viva a empatia e o companheirismo. Viva a união entre as mulheres!

Os direitos das mulheres são direitos humanos. Claro que é assim em teoria, mas na prática ainda se vai assistindo à diabolização das feministas. E as feministas “só” querem igualdade. Sempre foi assim. Os movimentos feministas sempre tiveram resistência na sociedade portuguesa e essa resistência vem sob as mais variadas formas, tendo sempre como alvo quem é pela defesa dos direitos das mulheres. Quem não tem um amigo que é todo defensor dos direitos humanos mas diz que as mulheres feministas são mal amadas? E, para que fique claro, o feminismo não é só para mulheres. Mas, infelizmente, ainda vivemos numa sociedade muito conservadora. Se há parte da população que alinha no discurso progressista e pró direitos humanos, ainda existem aqueles que querem a mulher remetida para o papel secundário a que foi remetida estes anos todos.

Ary dos Santos escreveu, antes de 1984, “A mulher não é só casa, mulher-loiça, mulher-cama, ela é também mulher-asa, mulher-força, mulher-chama”, numa clara alusão a que as mulheres podem ser o que quiserem. E podem, de facto. Não sem antes atravessarem o deserto. A maioria de nós teve uma educação machista. A maioria de nós viu a mãe a fazer o jantar enquanto o pai, sentado no conforto do sofá, descansava de um dia de trabalho. A maioria de nós viu a mãe sempre atarefada e até houve quem tenha ouvido que as mulheres tinham de se dar ao respeito. A maioria de nós cresceu assim, a acreditar que só os homens podiam concorrer ao lugar de heróis.

O empoderamento das mulheres é não só necessário como vital se queremos ser um país progressista. A inserção política das mulheres, para lhes devolver o poder que foi, desde sempre, cerceado. A melhoria do estatuto social, com os homens a ocuparem-se também das tarefas domésticas e assim as mulheres conseguirem trabalhar fora de casa e progredir nas carreiras. É necessário empoderar as mulheres para tudo o que elas quiserem ser, e em todos os lugares onde elas queiram estar. Porque se queremos uma sociedade progressista temos de parar de desconsiderar o contributo das mulheres. Ainda há tanto para fazer! Tantas lutas que temos para travar, tantas vitórias por conquistar. A igualdade, a equidade, o sol que quando nasce tem de ser para todos!

About the Author

Ines Moreira dos Santos
* Nascida e criada no Ribatejo, rumou a Lisboa, e por lá se licenciou em Psicologia. Fez d´O Segundo Sexo o seu livro de cabeceira e do avô o seu herói. Mãe de três, ativista a tempo inteiro, colunista. Fascinada pelo mundo e pelas pessoas que nele habitam. Acredita na igualdade e sonha com um país onde se cumpra a Constituição.

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