O ataque brutalista ao trabalho

Diversos acontecimentos marcaram os últimos meses e ilustram uma situação que, não sendo nova, é um retrato muito aproximado de uma ofensiva clara e explícita sobre o mundo do trabalho. Mesmo na óptica do putativo “desenvolvimento” capitalista, que precisa do trabalhador para realizar a sua função, impera a mais despudorada brutalidade em toda a sociedade, muito particularmente sobre o mundo do trabalho.

O brutalismo é uma corrente arquitetónica do pós-guerra, que se caracteriza pela exposição crua de materiais (sobretudo o betão armado), pela sua escala monumental e por uma funcionalidade despojada que não esconde a sua natureza massiva e por vezes opressiva. No campo do trabalho, emerge hoje, como expressão máxima do capitalismo contemporâneo que despe as relações de trabalho de qualquer revestimento protector ou humanizante, o que se pode apelidar de brutalismo laboral: um sistema que expõe, de forma crua e agressiva, a relação de poder assimétrica entre o capital e o trabalho, atacando direitos históricos e impondo uma lógica de austeridade existencial sobre os trabalhadores. Três componentes deste sistema definem-no de forma particularmente eficaz. O primeiro aposta na precariedade como alicerce, onde a reforma laboral substitui o contrato efectivo, estável e protegido, por uma multiplicidade de formas precárias: recibos verdes, falsos part-times, ou contratos a termo sucessivos. A precariedade não é um acidente, mas o novo alicerce do sistema, mantendo o trabalhador num estado de permanente insegurança. O segundo tem a designação curiosa de flexibilidade, caracterizando-se pela imposição de horários imprevisíveis, supressão de horas extras remuneradas e a erosão dos limites entre vida pessoal e profissional. Constitui de forma prática, a opressão e institui a arquitectura de um tempo de vida totalmente subordinado às necessidades imediatas da produção. O último apresenta a faceta mortífera da desvalorização salarial: os cortes salariais, o congelamento das progressões na carreira e a erosão do poder de compra, que são afinal o equivalente económico do betão cru e duro. A vileza destes “argumentos” conduz-nos, no primeiro quartel do século XXI, a uma realidade dura, inescapável e que define o panorama existencial do trabalhador, onde o salário deixa de ser um instrumento de prosperidade para se tornar um mero mecanismo de sobrevivência.

Os estudos e a influência social do brutalismo foram a marca da arquitecta e professora universitária brasileira Ruth Verde Zein, que analisa o brutalismo como fenómeno global e as suas conexões. Na sua obra, de 2009, “The New Brutalism: Ethic or Aesthetic?” (“O Novo Brutalismo: Ética ou Estética?”), Ruth leva-nos para além da arquitectura pura e dura, tentando centrar-se, para além da estética, numa autêntica dimensão ética e social. Também deveras elucidativo é o trabalho e a investigação do arquitecto finlandês Juhani Pallasmaa, que foi também director do Museu de Arquitetura da Finlândia e cuja obra fundamental, “Os olhos da pele – Arquitetura e os sentidos”, de 2013 é uma crítica à arquitectura espectáculo, opondo-se à frieza do “presente eterno“. Todavia, é na obra do jovem escritor e jornalista britânico Owen Hatherley, que podemos encontrar algo bastante sólido sobre o brutalismo. Na qualidade de editor da secção cultural da revista Tribune, uma publicação histórica associada ao movimento trabalhista britânico, tem escrito muitos artigos em que narra e assume uma análise crítica e de solidariedade fundamental com os ideais socialistas. Na verdade, Hatherley estabelece uma ponte com Marx e Engels, na sua obra de 2009, “Militant Modernism“, onde explora ideias de vanguarda, que ligam a arquitectura brutalista e modernista às ideias de trabalho, classe e poder, o cerne do seu conceito. Nele defende abertamente as formas estéticas modernistas (incluindo o brutalismo) não como um capricho de elite, mas como uma estética potencialmente radical e emancipatória para a classe trabalhadora, uma abordagem que pretende interpretar uma utopia social não realizada, uma tentativa de criar espaços colectivos e igualitários que sirvam o trabalhador, e não o capital.

Para compreender o que significa o brutalismo laboral vale a pena ler o artigo da socióloga portuguesa Maria da Paz Lima, na edição do Monde Diplomatique (edição portuguesa), do corrente mês de Outubro. O estudo a que deu o título “«Anteprojecto Trabalho XXI»: generalizar a insegurança laboral, implodir a negociação colectiva” mostra claramente a “regressão laboral do governo”, um objectivo preciso de liquidar de uma vez por todas direitos e garantias adquiridas, conquistados durante décadas, sempre no caminho tortuoso das auto-designadas (pela direita), “reformas estruturais”. Assim, o citado “Anteprojecto”, propõe-se, segundo a Autora, nomeadamente: “revogar a proibição do recurso ao outsourcing após despedimentos colectivos; repor a renúncia a créditos pelo trabalhador, quando o contrato de trabalho se extingue; eliminar as novas formas de arbitragem para apreciação da denúncia de convenção colectiva e para a suspensão do período de sobrevigência e mediação, as quais constituem um dispositivo de potencial travagem da caducidade unilateral; revogar a medida segundo a qual se aplica nas situações de outsourcing a convenção colectiva mais favorável aos trabalhadores subcontratados; reformular a presunção da laboralidade relativa aos trabalhadores das plataformas, …”

O que se passa no nosso País, tem hoje expressão evidente em França, Reino Unido, Grécia, Bélgica, apenas para citar alguns países europeus. Veja-se o triste exemplo do governo grego ao propor uma reforma trabalhista que permite uma jornada de trabalho de até 13 horas diárias. E, o caso da Bélgica, que se havia posicionado na vanguarda da legislação laboral ao dar aos trabalhadores o direito de optar por uma semana de quatro dias, mantendo embora as 38 horas semanais e utilizando a chamada flexibilidade como instrumento de opressão. É hoje, naqueles e em outros países, a greve geral o meio determinante para a resistência à austeridade. Mas não apenas, dado que tal pode significar a breve trecho, um aumento significativo de uma consciência de classe que a social-democracia quis enterrar.

Tomamos a mensagem que o realizador de cinema norte-americano Brady Corbet parece ter querido passar, quando em 2024, lançou o filme “O Brutalista“, um épico de drama histórico que narra a vida de um arquitecto imigrante judeu-húngaro que sobrevive ao Holocausto e emigra para os Estados Unidos em 1947, com a esperança de reconstruir a vida e a carreira. Corbet usa o movimento arquitectónico brutalista como uma metáfora poderosa para explorar temas de trauma, arte e o chamado “sonho americano“. O filme aborda e ilustra a relação entre trabalho, criação artística e estruturas de poder e centra-se na relação laboral entre o arquitecto e o seu mecenas capitalista. Corbet viria dizer, a propósito, que o seu personagem “foge do fascismo para se deparar com o capitalismo”, uma alusão que remete de forma explícita, para a transição que reflecte a mudança de um contexto de opressão política para um outro, de opressão laboral e económica, onde o protagonista, apesar de “livre“, se vê preso a um novo sistema com as suas próprias regras brutais.

A opressão terá decerto a resposta devida, que seguirá dentro de momentos.

About the Author

Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

2 Comments on "O ataque brutalista ao trabalho"

  1. Maria José dos Santos Rêgo | Outubro 17, 2025 at 11:11 am | Responder

    O autor escreveu verdades incontestáveis.

  2. Muito bem!

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