Inês Moreira dos Santos *
Contra a morte podemos nada. Contra a nossa morte ainda menos podemos, somos pequenos, crianças, quase bebés, a precisar de amparo, de colo, de um abraço, de alguém que nos acalme e diga que vai tudo ficar bem, o beijo da mãe na ferida, no arranhão, na nódoa negra.
Cura quase tudo. Levanta do chão a criança que caiu, apazigua o choro do bebé a meio da noite, acalma a criança no fim de um pesadelo, mas não cura a queda de um precipício, o naufrágio no mar, não apaga um incêndio, não evita a morte quase certa. Se curasse, se desse vida, se restabelecesse tudo no nosso corpo, não havia ninguém que se visse numa cama de hospital entre a vida, a morte ou sabe-se lá o quê. Tudo se traduz num desassossego, numa intempérie, num céu cinzento e chuvoso, numa tempestade, num naufrágio sem a arca de Noé, num pesadelo que nem Freud seria capaz de interpretar, numa novela, onde só há desgraça. O sufoco, as lágrimas, a angústia de querer viver, o desnorte, o medo, a angústia de querer morrer. O turbilhão de pensamentos que passam pela cabeça não tem um número, não se consegue dizer: olha, “pensei isto e isto”, porque se pensa muita coisa, não se consegue dizer “pensei um ou dois pensamentos”, porque é mentira, pensa-se um número infinito de pensamentos. É como se quando a morte bate à porta, então nada mais houvesse a esperar. Olha-se para todos à nossa volta e só se vê a angústia da morte iminente. Na cama de um hospital entre a vida, a morte e sabe-se lá o quê pensa-se um sem fim de coisas. Entre o barulho das máquinas, que afinal são o suporte de vida, o frenesim dos médicos e dos enfermeiros, são eles que vêm por soro, e dar a medicação e ver a temperatura e o barulho da desgraça que caiu sobre os pais e o barulho do padre que vem dar extrema-unção, há barulho a mais para conseguir contar os pensamentos.
Eu não queria ser Fénix, e seguramente não queria voar. E menos ainda me sentia forte. Ninguém quer ser desafiado a este ponto. Ninguém quer ter esta força.
Era sempre à noite que vinha, com uma bacia cheia de água quentinha, nem sei bem o que era aquela bacia, de metal, ou outra coisa qualquer, um shampoo e uma toalha, lavar-me o cabelo. Mais do que a compaixão natural de uma enfermeira ao ver uma jovem estendida numa cama às portas de sabe-se lá o quê, havia um sentimento de dedicação à profissão, como se fosse o amor da vida dela, como se fosse aquele primeiro beijo atrás do pavilhão, como se fosse o primeiro amor da sua vida, como se fosse o tão desejado gelado de framboesa, como se fosse conhecer um ídolo, como se fosse o colo da mãe. Aquele colo para onde se corre e que nos garante que nada na vida pode ser muito mau se tivermos aquele colo. Fazia-me festinhas na cabeça, como se aquelas festas me fossem curando e devolvendo à vida. Ía dizendo que eu tinha de estar hermosa quando ganhasse a luta da minha vida, e iria ficar mais hermosa ainda quando vencesse, precisava estar pronta para dizer: sim senhora, ganhei, toma, vai buscar, não me levaste esta vez. Muito meigamente, como quem não quisesse provocar-me mais dor, sabia, sabiam todos, que não havia dor maior que a possibilidade de ver a vida neste emaranhado de emoções e sensações e era tudo muito difícil, muito amargo, deixava uma aspereza na boca. Se tivesse morrido logo, já não sentia nada. Assim sentia dor. Como se a morte estivesse sentada à cabeceira da minha cama, a minha mãe de um lado e a morte do outro, como nos desenhos animados, a tamborilar com os dedos em cima da mesa, a olhar para o relógio, a fazer um braço de ferro com a minha mãe, uma luta inglória. A minha mãe, naqueles dias, não tinha força. Não tinha nada. A maior dor era a dela.
Chamavam-me de Fénix lá no hospital. Fénix Ribatejana. Ninguém dava um centavo furado por mim, a verdade é essa. E eu era a personagem principal desta história. Uma história que ninguém quer protagonizar. Todos querem ser personagens principais de uma história bonita, nunca, em tempo algum, alguém quis uma história que se passasse numa cama de hospital. Fadas e princesas. Queria ser a protagonista de uma história leve, como as histórias que a minha avó me contava quando era pequena, durante o lanche. O futuro é incerto, e o meu, naquelas semanas, nada promissor, uma neblina, aqueles dias de muito nevoeiro em que não se vê nada à frente, quase como o dia em que desapareceu D. Sebastião. Eu não queria ser Fénix, e seguramente não queria voar. E menos ainda me sentia forte. Ninguém quer ser desafiado a este ponto. Ninguém quer ter esta força. E sobretudo ninguém se quer ver num hospital, entre a vida, a morte e sabe-se lá o quê. Com tantos planos e projetos. Tão nova e cheia de vida. Tanta coisa para aprender. Tanta coisa para conhecer. Tanta coisa para fazer. E puff. Não sei como vi-me a caminho de Lisboa, numa ambulância e o único projecto que podia ter era sobreviver. Tinha tido um AVC, rápido, letal, que para mim, por sorte, não o chegou a ser. Ou milagre, como a minha mãe gostou de pensar. Tinha tido um AVC, essa doença que afinal também podia acontecer com jovens, percebi eu ao passar pela experiência. Quem tinha permitido aquilo? Tinha faltado a que lição? A que Deus deveria eu pedir contas? A minha vida quase deixou de ser vida. Com aquela idade ninguém espera morrer. E eu não morri. Houve um momento em que a minha vida esteve por um fio. Suspensa. Para mim chegou como uma consciência quase inconsciente de que aquele momento era o último da minha vida. Como no teatro, o cair do pano.
“Há palavras que requerem uma pausa e silêncio”
escreveu Herberto Helder
A vida é um sopro e todos os planos que eu tinha feito para mim, estavam suspensos. Talvez irremediavelmente e definitivamente acabados e os meus planos teriam de ser não ter planos. Queria mexer-me, não conseguia. Queria falar, não era capaz. Fechei os olhos, encostei-me à cabeceira do sofá e deixei-me ficar, não sei se chegou a um minuto, não sei se foram horas, sem força, sem movimento, sem voz, quieta, queda e muda, a ver a azáfama que se criou à minha volta. Sustive a respiração e achei que estava a entrar numa dimensão paralela. Palavra de honra. Existem coisas, na nossa vida que, de tão surreais, parece que não aconteceram. Eu era eu e era a outra, aquela que estava ali no sofá. Eu era aquela que ia ver o Benfica dali a uns dias, e ao mesmo tempo aquela que ia morrer dali a umas horas. Como uma machadada. Foi literalmente assim. Não é hipérbole do que aconteceu. A realidade. Dura. Entendia nada. Senti-me vazia. Cansada de me sentir vazia. Ou lá como se sente quando a morte bate à porta.
Era a primeira vez que ninguém esperava nada de mim. O meu avô paterno já não esperava que eu fosse advogada, o meu avô materno já não esperava que fosse boa aluna, para concretizar tudo o que ele não tinha conseguido. Os meus pais já não esperavam por mim quando chegava da faculdade, a minha irmã já não esperava de mim o exemplo que todas as irmãs mais velhas estão obrigadas a dar, como se quando nascesse outro bebé nosso irmão viesse com uma certidão de obrigatoriedade de não fazer asneiras porque temos sempre um ser mais pequeno a olhar para nós e também já não esperava por mim à porta dos trampolins onde a ia buscar, ao final do dia. O que significava uma de duas coisas: ou eu já não era gente ou deixaria de ser em breve. E isto é uma coisa brutal. Brutal de bruto e brutal de desumano, e brutal de emocionante. Na verdade, não cheguei a morrer. O AVC não me matou. Aquele que era só para velhos, mas afinal eu era nova e tinha tido um. Continuei a viver, um caminho normal, tranquilo, tudo normal como se nada tivesse acontecido excepto o facto de ter mesmo acontecido.
Há palavras que requerem uma pausa e silêncio, escreveu Herberto Helder, e eu pensei exatamente nesta frase quando ouvi as palavras da médica. Olhei para a minha mãe a precisar de uma pausa e de um silêncio. Todos os momentos de sofrimento precisam de uma pausa, como se a vida fosse um filme e desse para parar, um “corta” tinha vindo a calhar, o cair do pano no teatro, aquele “já chega de conversa” que dizemos aos nossos filhos quando está na hora de dormir, o levantar de uma mesa quando a conversa não nos interessa e sair. A vida é muitas coisas, disse uma vez não sei quem, e a da minha mãe, naquela altura, com uma filha entre a vida, a morte ou sabe-se lá o quê, era quase nada. Foi a minha mãe que limpou as lágrimas, as dela e as minhas, e foi a minha mãe que ganhou a força para mim. Como se tivesse transferido as minhas fraquezas para a minha mãe e ela mas tivesse devolvido em forma de forças. O amor pode muitas coisas, é um facto, nem eu ainda sei bem quantas. O amor incondicional pode ainda mais. A dureza da vida transformada com a força do amor em resistência. Assim, seguimos lado a lado, em frente, um caminho difícil, com muitos altos e baixos, com muitas desilusões mas com mais alegrias, e muitas lágrimas depois, porque nada na vida, estou em crer, de muito bom ou de muito mau, se faz sem lágrimas. Como se a nossa vida se tivesse tornado numa montanha-russa e a minha mãe, tivesse vestido a farda de motorista e dito: bem-vindos a esta viagem, será a viagem da vossa vida. E foi, foi a viagem da minha vida e eu fi-la de braço dado com a minha mãe. O meu porto seguro, onde fui atracar depois de uma tempestade.
Uma “história” real de vida que me deixou arrepiado, apesar de já ter conhecimento da situação que passaste. Uma delícia e de uma força contagiante o que escreveste, e felizmente, com um final Feliz.
Adorei. Obrigado
Bem hajas
Um escrito real, eivado de um sentimento profundo e de partilha de quem viveu um episódio de arrepia.
É a vida, dizemos, mas é a vida que prezamos e a que nos agarramos quando assim tem que ser. É o sonho e a esperança de quem tem tudo para dar, na luta pela transformação social que se impõe.
Bem hajas Isabel, por teres dado este contributo pesado e leve, como o sopro de Vida e em que a Poesia da palavra faz tremer montanhas e mover rios de esperança neste mundo ao contrário.
Mesmo sem te conhecer pessoalmente, digo, estamos juntos!