Estranha forma de vida

Por Alfredo Soares-Ferreira

“Não, deus não nos abandonou,
Apenas, por cortesia, por respeito, por educação se arredou um pouco…”
“Tsintsum E Auschwitz”, Manuel Resende, “Poesia Reunida” (2018), pág. 108

Diz a letra de uma canção que terá sido “…por vontade de deus / que vivo nesta ansiedade”. É o fado, essa criação lusitana que já não é o que era e provavelmente nunca o foi. Mas parece emergir hoje uma estranha forma de vida dos escombros de um passado de que ainda não nos libertamos. E que não tem, no entender do Poeta, sentido algum que não seja o apelo ao divino, que parece entroncar nos apelos globais de uma reacção primária à guerra.

Uma falácia de proporções imensas atravessa por estes dias a humanidade, que parece ter acordado agora para os horrores da guerra. Mesmo o princípio de que se parte, em primeira instância, da condenação de uma invasão, não é o bastante para justificar a histeria que tomou conta da nossa vida colectiva, provocada e objectivada de forma evidente, em declarações, projecções e atitudes. É um fenómeno espectacular, mediático e social. Ao invés de se tentar procurar uma solução, contribui-se para tentar moldar a comunidade, induzindo um clima de intolerância tal, que impede na prática, quer a análise, quer a tomada de decisões estáveis e conscientes. É o atiçar do fogo eterno da guerra, para gáudio de todos os sequazes e esbirros que, nestes dois séculos, se alimentam dela e da desgraça colectiva provocada pelas suas consequências. Conhecemos, infelizmente bem, o que se passou após o derrube das torres gémeas em Nova Iorque, a tremenda e avassaladora série de acontecimentos guerreiros, invasões sem sentido, brutais ameaças que resultaram, pura e simplesmente da fúria securitária. Sabemos ainda quem teve a responsabilidade. Eles estão hoje, todos do mesmo lado, alinhados sobretudo numa hipotética missão: a da intoxicação da opinião pública, com vista a produzir a pressão suficiente para decisões políticas irracionais.

Vários exemplos poderiam ilustrar o primarismo e a intolerância. O percurso desde 24 de Fevereiro mostra como o designado ocidente tratou a invasão, da pior forma possível. O mínimo cuidado exigido seria o de preservar politicamente uma posição consentânea com as partes em conflito. Que não começou agora e que remonta, pelo menos a 2014, tendo deixado atrás dezenas de milhar de mortos, que hoje parecem esquecidos. Falar hoje em dia de paz parece uma heresia e leva a enfileirar quem a defende no lado obscuro das trevas que ensombram as estepes russas e que são “comandadas” por um diabólico espírito que parece ter emergido de uma revolução que começou em Outubro e que nos ameaça de novo, mesmo que encarnada por uma figura que a renega liminarmente. É tudo realmente muito triste. Em vez de tentar parar a guerra, os amantes da metralha querem que ela se estenda até nós, mesmo que para tal seja justificável todo o procedimento que dizem repudiar. Na rádio instala-se um “conselho de guerra” [1], nas televisões passam imagens de horror, algumas recuperadas de há 8 anos, outras de filmes, outras de videojogos, nos tabloides abundam as declarações bombásticas, de louvor a um homem que passou de um vulgar actor secundário a herói nacional e da bestialização retorcida do agressor, classificado, ora de louco, ora de facínora. É difícil encontrar, na praça dos horrores, um espírito aparentemente livre, daqueles que um dia invadiram Iena [2], para a transformar numa espécie de república que abria os horizontes de uma nova forma de pensar o mundo.

Pelo éter passam “pérolas” como esta, “…é preciso preparar um plano de emergência para o País”, para o nosso entenda-se, como se em guerra estivéssemos. Mas a suposta “inocência” da asserção até se poderá compreender com esta outra “…é preciso que as pessoas se vão habituando a que temos que prescindir de alguma coisa, para investir na nossa defesa”. A lógica destas “teses” determina o desembocar natural nesta, que afinal parece ser a interpretação da fatalidade: estamos hoje perante uma nova forma de vida e por mais estranho que nos possa parecer, ela ir-se-á impor, no nosso destino colectivo.
Afinal, o fado.

O tremendo aumento do custo de vida anunciado faz-nos lembrar o “tremendo aumento de impostos” de Gaspar [3]. Haverá sempre uma oportunidade que o neoliberalismo espera para infernizar os cidadãos. Na verdade, o aumento do preço dos combustíveis provoca aumentos em tudo o que mexe, na economia e na vida. Com a energia passa-se a mesma coisa e o País parece assistir conformado, ainda que expectante, pela entrada em funções de um novo governo. Pelo meio ficará decerto mais uma percentagem alargada de limitações e privações, numa comunidade fragilizada pela pandemia e que pensará decerto que ainda não é agora que sairá do estado em que a deixaram. Haverá certamente mais apelos à dita “resiliência”, que, traduzida para palavras simples daria provavelmente mais um “…aguenta”.
Afinal, outra vez, o fado.

O sociólogo e filósofo polaco Zygmunt Bauman [4] falou na necessidade de confiar no potencial humano, para retomar as utopias. Ao propor o conceito de “modernidade líquida” para definir o presente, Bauman diz que existe hoje uma relativa fluidez social, caracterizada por um ambiente de incerteza permanente, uma tentativa de colocação da responsabilidade por eventuais fracassos no plano individual, um enfraquecimento dos sistemas de protecção individual e, finalmente, um divórcio completo entre poder e política. E define duas condições para o retorno das utopias. A primeira é a consciência, ainda que difusa e inarticulada, de que o mundo não está a funcionar de forma adequada e precisa rever os seus fundamentos. A segunda baseia-se no potencial humano de transformação, a capacidade dos cidadãos em tomar e definir o seu próprio destino. Na estranha forma de vida que nos pretendem impor, através da tentativa de privatizar o pensamento, não devem caber as nossas utopias. Porque são perigosas e contrariam a corrente dominante.
Afinal, outra vez, o fado. E, desta vez, para o renegar em definitivo.

[1] Referência a um programa diário da TSF, repetido duas ou três vezes a horas diferentes. Lk lk 123
[2] Iena é uma cidade alemã localizada na Turíngia, que alberga a Universidade Friedrich Schiller, a maior universidade do estado da Turíngia e que foi dirigida, no início do século XIX, por Goethe e por onde passaram destacados professores de várias vertentes do conhecimento, como Fichte, Hegel, Schelling e Von Schlegel e alunos célebres com Novalis e Marx.
[3] Frase do ministro Vítor Gaspar, em 2013, ao anunciar as medidas do seu governo, que quis ir além da própria troika.
[4] Zygmunt Bauman, sociólogo e filósofo polaco (1925-2017), foi um dos pensadores actuais que nos deixou obras que reflectem e tentam interpretar os tempos contemporâneos. Viveu a ocupação nazi, na 2ª Guerra Mundial, teve militância activa na resistência.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.