Por Inês Moreira dos Santos *
Assobiar é coisa de menino. Não podes sentar-te de pernas abertas. Assim, cruza-as. Mas não deixes a perna de cima muito alta, fica deselegante. E, se não queres que olhem para as tuas pernas, não uses saia. Se vais sair de mini saia já sabes que os homens olham. E não fales alto. As mulheres querem-se a falar baixinho. As que falam alto são histéricas. E não bebas cerveja, é feio. Não bebas álcool.
Não fumes, que isso é coisa de oferecida. Nem faças tatuagens. Que isso é coisa de gandula. E não fales a seguir a um homem. Um homem não é de ferro, e tem necessidades. Elas provocam. E não revires os olhos, isso é coisa de menina mal comportada. E se ele se meteu contigo alguma tu fizeste. As mulheres hoje em dia usam saias tão pequenas que parecem cintos, e depois queixam-se que os homens as assediam. Não sabes que isso é da natureza dos homens? E olha para esse decote, esconde essas mamas, depois queixas-te. Agora também são todas assediadas. Como é que vais casar se nem sabes estrelar um ovo? Mulher honrada não tem ouvidos e ainda menos dá respostas. Comporta-te! Recatada e do lar.
Como uma carta tirada de um baralho de cartas, há sempre qualquer coisa que remete as mulheres para o lugar delas. Que não existe. Que é fabricado pelos preconceitos e por esta ideia, mais ou menos explícita, de que quanto mais vassalagem se presta aos homens melhor mulher se é. Quanto mais deixamos um homem brilhar e fazemos as coisas todas à sua maneira – isto pode ser visto na infantilização masculina crónica – a mulher, esse ser que não se importa de ter dupla jornada porque é tão abnegada que se mata a trabalhar dentro e fora de casa. Isto tudo com cheiro a bafio, mas é o cheiro com que muitas de nós crescemos.
Assim aprendesse que a um homem tudo é permitido. Tudo. Incomodar uma mulher, violentar uma mulher, bater numa mulher. Há um mundo desigual, surgem sempre argumentos para relativizar as suas ações e desvalorizar as suas consequências. Abre-se a janela e vê-se, por exemplo, as vizinhas atarefadas com os filhos ao colo, e os sacos das compras numa mão, e mulheres que vão estoiradas. Chega-se a casa e é sempre igual, a mãe cozinha, exausta, a jornada dupla, óbvio, depois de um dia de trabalho e perguntamos porque o pai não ajuda, mas entretanto vamo-nos habituando e até replicando na nossa vida. Era assim que víamos em casa dos nossos pais, dos nossos avós, é assim que fazemos na nossa casa. Os filhos, a casa, os homens têm mais disponibilidade para tudo, para se tornarem quem quiserem, para ir ao sábado à tarde ao futebol ou a reuniões de trabalho ou de um partido político, por exemplo, tem muito mais facilidade em aparecer em qualquer lugar, porque a sociedade do país não lhes cobra nada. O filho está doente, é a mãe que fica em casa. A mãe vai buscá-lo à escola, o pai está a trabalhar. Mas a mãe também trabalha. Mas a mãe tem obrigações. A sociedade, a família, todos, exigem demais a uma mulher.
A carreira do homem corre de vento em popa, a mulher cozinha porque gosta mais. Pois claro, como no tempo da outra senhora, quando o “gostar mais” era para parecer bem à sociedade. Pena que este vento não seja suficiente para mandar abaixo todos os maus hábitos que se criam com a masculinidade tóxica. E depois perguntámos porque existem diferenças salariais, porque existe violência doméstica, porque existe tanta depressão. Cada mulher tem a sua história de opressão, mais ou menos grave, com mais ou menos danos para a sua vida.
Estranha-se o facto de vermos maioritariamente homens na política, a comandar os destinos do país
A desigualdade está em todo o lado, se nos propusermos a vê-la. Quando se desconhece a igualdade, torna-se mais difícil ver os problemas que daí advêm. Estranha-se serem sempre mulheres a ter o trabalho de cuidado, mas somos muito pequenos para mudar alguma coisa. Estranha-se o facto de vermos maioritariamente homens na política, a comandar os destinos do país, que podemos nós fazer? Estranha-se as mulheres apressarem-se a reduzir os sinais do envelhecimento e aos homens esses mesmos sinais serem sinais de charme. Estranha-se as conversas da vizinha a culpar a mulher pelo alcoolismo do marido, mas segue-se em frente, ninguém pode mudar o mundo. Estranha-se as mulheres divorciadas serem olhadas de lado, como se tivessem cometido um crime.
Estranha-se o facto de toda a gente falar como se uma mulher tivesse nascido para ser mãe, e algumas até são para cumprir um desígnio imposto pela sociedade. Estranha-se o facto de ouvir dizer que temos de nos dar ao respeito quando arranjamos namorado, mas o certo é que passamos a escolher a roupa com mais cuidado e a sentirmo-nos culpadas por alguma importunação. Estranha-se alguns comportamentos de homens relativamente a mulheres, e estranha-se, acima de tudo, a culpa ser sempre da mulher – alguma ela fez, se não queria não tivesse dançado com ele, ela é que casou com ele, agora aguente-se.
As contas são simples, na verdade, mas, quando estamos a ser trituradas para caber num sistema, nem damos conta. Já só sorrimos e acenamos. Como é que uma menina aprende a sair quando é maltratada se é educada com estes e outros chavões? Como é que uma menina aprende a lutar, quando lhe dizem que tudo o que sabe fazer é bordar? Como é que uma menina pode aprender a não aceitar violência num relacionamento se tudo o que a ensinam são coisas que as meninas aprendiam no tempo da outra senhora? Como é que uma mulher pode aprender a ser livre? Recatada e do lar, que não se mostre, que não fale, que não duvide, que não refile, que não seja impertinente e, sobretudo, não seja de cabeça levantada. E é uma luta ser tudo ao contrário do que nos ensinaram a ser. Tomar a nossa vida nas nossas mãos, não depender de ninguém, andar de cabeça erguida. A reivindicação de nós próprias é a melhor conquista que pode haver.
A luta pela igualdade tem sido lenta, morosa, cheia de avanços e recuos, com parte da sociedade a puxar em sentido inverso ao progressismo. Quanto mais livres forem as mulheres, mais progressista a sociedade será. A luta pelo direito à igualdade tem tido uma série de obstáculos, muito por vivermos numa sociedade bafienta em que alguns seguem a educação que António de Oliveira Salazar deu ao país: no seu tempo havia mais respeito, no seu tempo não havia tantos divórcios, no seu tempo é que era. Por isso muitas mulheres ainda suportam coisas inimagináveis dentro de quatro paredes e as famílias ainda educam de maneira conservadora.
As mulheres sofrem a desigualdade de diferentes maneiras e diferentes intensidades. Uma mulher de classe média não sofre as mesmas discriminações que uma mulher pobre.
O feminismo é necessário, e tem de ser interseccional ou não será. O feminismo tem de considerar a classe, a raça e a orientação sexual, e o feminismo tem de entender que todas estas categorias são geradoras de desigualdades e todas são relevantes para entender as desigualdades e para entender a luta necessária para ultrapassar os problemas que advém da desigualdade. As mulheres sofrem a desigualdade de diferentes maneiras e diferentes intensidades. Uma mulher de classe média não sofre as mesmas discriminações que uma mulher pobre. Uma mulher negra não sofre as mesmas discriminações que uma mulher branca. Uma mulher lésbica não sofre as mesmas discriminações que uma mulher heterossexual. Para lutar por todas as mulheres é necessário lutar contra as forças reacionárias que por aí pululam. Estas mulheres diferentes, sofrem tipos de violência diferentes, que vão condicionar de forma diferente a sua vida. Umas são mais privilegiadas que outras. Umas são mais oprimidas que outras. Em cada nível de opressão, existem diferentes mulheres a sofrer. Curioso como, dependendo da situação, uma opressora pode passar rapidamente a oprimida e vice-versa.
Basta lembrarmo-nos da petição contra as aulas para a cidadania de há bem pouco tempo. Conservadores que pretendem manter o status quo a seguir em frente. Em Portugal, e no cumprimento da Constituição da República Portuguesa, deveremos seguir o caminho do progressismo e não abdicar das aulas de cidadania. O conjunto de direitos e deveres dos seres humanos, independentemente de qualquer variável tem de ser para todos, e é precisamente isto que se ensina nas aulas de cidadania. Ser contra isto é ser contra a igualdade e ser contra a igualdade é ser a favor dos privilégios de uns e das opressões de outros. A educação para a cidadania é uma das formas de combate à exclusão social e à violência de género, podendo assim ser um factor de mudança social da sociedade.
Os papéis sociais para homens e para mulheres ainda estão muito marcados. A propósito disso lembro-me sempre do episódio de um bebé que começa a chorar, a mãe está desesperada a fazer tudo para acalmá-lo, com pessoas a dizer-lhe o que deve ou não fazer e o pai lê o jornal descansadamente. Isto aconteceu. Isto é real. As desigualdades continuam a existir nas mais variadas situações, questões profissionais, questões domésticas. À mulher a casa e a família.
O facto de sempre ter sido assim não faz com que tenha de continuar assim. Salazar deixou-nos uma herança pesada no que se refere à igualdade, sendo a desigualdade de género gritante. As mulheres eram afastadas da esfera pública e eram assim remetidas para o trabalho doméstico e de cuidado, ficando dependentes financeiramente, mãe, esposa, dedicada à família e ao marido. A ideologia de género do Estado Novo preparava as mulheres para a maternidade, para o trabalho de cuidado, para o trabalho em casa. Haviam creches onde as meninas iam aprender a ser mulheres, ou seja, a ser serviçais de um homem toda a vida. Se levassem pancada do marido, tinham de comer e calar, as leis protegiam o chefe de família.
Isto condicionou a prosperidade da mulher, e o seu futuro. Claro que hoje a desigualdade se pauta por coisas diferentes, mas em muitas casas ainda se vê os mesmos problemas que se viam nos tempos sombrios da ditadura. Muita coisa mudou, logo em 1976, com a aprovação da nova Constituição, onde a igualdade é lei. Mas não chega, claro que não chega, as desigualdades estão internalizadas. E é preciso gritar, gritar bem alto, que não ficaremos mais caladas. Que denunciemos cada forma de opressão, de desigualdade. Que resistamos.
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