Despublicar, Teoria e Prática

Alfredo Soares-Ferreira *

Um termo de contornos pouco simpáticos e porventura instituído por força da “nova ordem” e que pode significar retirar de circulação, é “despublicar”. Aparentemente, tem como efeito imediato que um texto, artigo ou tese deixe de estar visível nos locais habituais, seja qual for o formato em que se encontre. Por deixar de ter interesse, ou porque foi simplesmente erradicado propositadamente, o objecto de eliminação é a vítima imediata da fúria censória que, na terminologia do século XXI, é conhecida como cancelamento. Quem se dedica à “nobre” “tarefa” de cancelar pertence ao impiedoso grupo de zeladores de consciências que se instalaram na vida social e que praticam ardilosos exercícios de violação, formados que são no cadinho da urdidura da nova linguagem.

O escritor norte-americano Andrew Keen, conhecido como o “anticristo do vale do silício”, é um crítico das eventuais “promessas libertárias” da internet e um autor profícuo nesta área. Na sua campanha contra a designada Web 2.0, publica em 2009 “O Culto do Amador”, fazendo notar que alguns blogues ou plataformas como o Myspace, o Youtube e a designada pirataria digital têm vindo a “…destruir a nossa economia, a cultura e os valores”. No ano 2012 publica “Digital Vertigo” (“Vertigem Digital”), onde se debruça sobre as redes sociais, destacando consequências no equilíbrio psicológico dos utilizadores e uma erosão da privacidade promovida pela utilização dos seus serviços. Este livro é claramente uma alusão ao filme de Hitchcock “Vertigo”, de 1958, para além da chamada de atenção para a multiplicidade de aplicações (apps) produzidas para manter os cidadãos ligados de forma permanente. Posteriormente, em 2016, Keen edita “The Internet is not the answer” (“A Internet não é a resposta”), onde manifesta o seu criticismo sobre a narrativa dos “tecnológicos”, para quem a internet iria trazer igualdade, democratização e promoção da afirmação e capacidades. Keen acusa os grandes monopólios Amazon, Google e Facebook, que lucram milhões com os dados dos utilizadores, agravando simultaneamente as condições de vida dos trabalhadores e atentando contra os seus legítimos direitos. Falando claramente em “desinformação” e “fragmentação social”, o Autor acusa o que designa por “feudalismo digital”, fenómeno actual em que os senhores tecnológicos controlam os dados e as plataformas, enquanto os utilizadores são “servos” que fornecem trabalho e informação pessoal.

Também o austríaco Viktor Mayer-Schönberger, professor das universidades de Harvard e Oxford e especialista em política de regulação de dados e ética em inteligência artificial, estuda a despublicação e as suas consequências. Na sua obra de 2009, “Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age” (“Apagar: A virtude do esquecimento na era digital”), alerta para os riscos da “memória eterna” digital, já que a tecnologia permite armazenar informações pessoais indefinidamente, contrapondo o equilíbrio entre inovação e privacidade. Para Mayer-Schonberger, a cultura mainstream de hoje é suportada na digitalização, com os riscos inerentes a uma imprecisa e deficiente utilização de dados, chamando a atenção para o excesso de dados que pode conduzir a decisões enviesadas.

Na sua tentativa de instituir uma denominada “convergência mediática” o professor e investigador norte-americano Henry Jenkins cruza também os caminhos do ecossistema digital interconectado. Na sua obra “Cultura da Convergência”, de 2006, Jenkins define a “convergência” como inevitável, mas com riscos éticos e estruturais, apresentado como respostas a cultura da educação mediática e a inclusão digital, no sentido de uma harmonização social, sem cancelamentos.

O resultado imediato foi que se tratava de “uma tristeza de texto”, assim mesmo.

Pensar e passar a escrito este fenómeno, esta forma nova que pulula numa sociedade velha, corre naturalmente o risco de “alguém” se lembrar que possivelmente a reflexão pode não interessar, apressando-se simplesmente a ocultá-la ou eliminá-la. Contudo, vale a pena tentar perceber como e porque se pratica o acto em si, uma vez que a base da sua acção é tão simples e vazia quanto a razão de o ser: cancelar, porque não encaixa nos cânones ou porque não deve ser publicada. Assim, se despublica em abstracto. O concreto segue dentro de momentos, num exemplo de que fui protagonista nos últimos dias. Em reacção a um artigo publicado no Facebook emiti uma posição crítica, explanando as razões da discordância, sustentando considerações e argumentos. O resultado imediato foi que se tratava de “uma tristeza de texto”, assim mesmo. Reagi, sustentando que a resposta não era correcta, afirmando que o que se deve discutir são argumentos e posições. O segundo comentário foi devastador: a pessoa em questão foi pesquisar as minhas publicações e como dizia não ter encontrado qualquer posição relevante sobre a matéria em apreço, eu não tinha o direito de me intrometer na discussão e, como tal, iria ser simplesmente banido, dado que não lhe interessava discutir comigo.

Muito embora a despublicação e um mais que provável cancelamento não existam apenas no plano digital, é neste, porém que a sua manifestação é hoje mais usual e evidente. Sendo nitidamente que é uma censura que está em causa, que hoje se faz às claras e sem qualquer objecto que não seja a “prática” em si. Mais complexa e possivelmente controversa será a aposta na formulação de uma “teoria” que, no mínimo, questione se algo deve (ou não) ser objecto de despublicação. Bem a propósito está o texto de David Marçal no jornal Público do passado 21 de Fevereiro, sob o título “Os disparates desmentidos da covid-19”, onde se reporta o facto de existirem erros evidentes em vários artigos científicos sobre a matéria, detectados por especialistas. Marçal refere a circunstância de a comunidade científica identificar erros, enviesamentos ou faltas de ética e de o editor reconhecer que o artigo não deveria ter sido publicado. Neste caso o melhor, segundo Marçal, será manter o artigo disponível on-line acompanhado de uma nota de retractação, que enuncie os problemas identificados, em vez de eliminar simplesmente o mesmo, o que, na verdade, não é considerado uma boa prática. Teorizar sobre o tema, isso sim, como facilmente se demonstra, será uma boa prática.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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