Democracia, miragem e ilusão

Alfredo Soares-Ferreira *

Há uma questão central que subsiste quando se fala em “democracia”. Na verdade, o termo, que pretende incorporar um conceito, é, em pleno século XXI, perfeitamente vilipendiado e ultrajado por pessoas e organizações, elevando-o ao grau supremo da coisa nenhuma, ou à mais vil das ideias, pela simples razão de ser esvaziada de qualquer conteúdo racional. Basta ver o destino que lhe é dado pelos dignitários neoliberais, que pretendem aplicá-lo às suas torpes medidas, nomeadamente através da propaganda constante e permanente, para induzir a culpa nos cidadãos pelas falhas do e no sistema.

A questão da Justiça é bom exemplo da base de funcionamento das designadas democracias liberais. Na verdade, é apenas o reflexo da uma distorção algo perversa do funcionamento de um sistema que apenas é democrático no aspecto formal e que pouco, ou nada, tem a ver com princípios e que, mesmo nas regras, deixa antever o seu carácter classista e discriminador. Pode dizer-se até que a Justiça, nos sistemas de democracia ocidental, diz bem do carácter e da forma como a burguesia dominante pretende exercer e impor a sua dominação. O que leva obrigatoriamente a questionar as “democracias” e o seu pendor repressivo, ainda que suavemente exercido. No nosso País, é vulgar equiparar o funcionamento da Justiça às situações e casos que envolvem o Ministério Público. Porém são sobejamente conhecidos casos de distorção completa das regras, sempre em desfavor daqueles que não têm forma, nem dinheiro, para se defenderem das arbitrariedades.

Há sempre uma notícia, por mais idiota que seja, para brindar esta estação.

O escritor e poeta italiano Carlo Emilio Gadda, que era um engenheiro electrotécnico de formação, deixou-nos uma análise muito peculiar dos fenómenos sociais. Para ele, o mundo não passa de uma encrenca, uma embrulhada ou um novelo. Havia na sua escrita, tal como transborda do seu pensamento, uma “comicidade grotesca”, na opinião do ensaísta cubano/italiano Italo Calvino, na sua obra “Seis Propostas para o Próximo Milénio”, que aborda, no capítulo “A Multiplicidade”, os aspectos da “casualidade” em Gadda. Este Autor milanês, pouco conhecido, mesmo no seu País, tem a virtude de exercitar uma narrativa não-convencional, de contornos jornalísticos, onde prospera uma visão crítica das sociedades e em que retrata o mundo numa faceta de vulgaridade extrema e paupérrima, do ponto de vista intelectual. Esta visão é bem actual, apesar de a actividade do escritor ter sido entre os anos trinta e setenta do século passado.

Por esta época do ano, há tendência para “deixar a política de lado” e ir a banhos para descanso. Uma estação silly [parva] onde a regulação do sistema é deveras curiosa. Enquanto a democracia e a justiça vão de férias, as desigualdades e as injustiças prevalecem e por vezes acentuam-se. A distracção deliberada dos cidadãos com questões laterais é uma das formas de actuar mais determinantes destes sistemas. Há sempre uma notícia, por mais idiota que seja, para brindar esta estação. Neste ano, o prémio vai para a condecoração que Marcelo decidiu atribuir a um “artista” que parece ser um mestre da cópia e do plágio, mas que o Presidente entende que presta serviços relevantes à Pátria e que é um “símbolo da diáspora portuguesa”. O que é, acima de tudo, um insulto à própria diáspora portuguesa. Na verdade, dizer que um indivíduo que copia e plagia intencionalmente, é “leal em relação aos seus amigos e companheiros de percurso ao longo de décadas”, raia o ridículo absoluto e diz bem do que é o baixo espectáculo mediático hodierno, que pretende atribuir a condição de “inválido”, na óptica de “não-válido” ou ignorante, ao cidadão desprevenido. A nível internacional, a afirmação, não menos risível que a de Marcelo, pertence ao “socialista” espanhol Josep Borrell, a quem foi “oferecido” o cargo de Ministro de Assuntos Exteriores, da auto-intitulada “União Europeia” e que naturalmente dispensa qualquer comentário: “O resto do mundo não é exatamente um jardim… é uma selva… que pode invadir o jardim”. Numa quase desnecessária explicação, anota-se que o “jardim” é a Europa, ou melhor, a tal “União” que ele supostamente pensa representar e que tem, segundo ele, a melhor combinação de “liberdade política, prosperidade económica e coesão social” alguma vez conhecida pela humanidade, devendo como tal ser protegido da “selva” exterior.

A ligeireza das análises é a forma mais adequada que existe para estancar as necessárias respostas às questões sociais. A diversão continua, nos próximos capítulos, nomeadamente nos Jogos de Paris, incorrectamente designados de “olímpicos”. A constatação de uma pasmosa dualidade de critérios conduz os responsáveis do Comité Olímpico ao mais completo desatino, ao proibir Estados de participar, com “regras” inventadas à última hora e ao permitir a participação de outros, responsáveis pelos maiores genocídios da História contemporânea. Uma atitude moralista, de contornos intoleráveis, que desgasta substancialmente o “espírito olímpico” e, como acontece invariavelmente hoje, na proclamação de valores caducos e castradores de consciências e, pouco, ou mesmo nada, democráticos.

De pouco servirão hoje as palavras de Louis de Saint-Just, revolucionário do século XVIII, “Les malheureux sont les puissances de la terre; ils ont le droit de parler en maîtres aux gouvernements qui les négligent.” [Os infelizes são os poderes da terra; têm o direito de falar como senhores aos governos que os negligenciam]. Como a ode da legalidade burguesa, dotada de uma verborreia prosaica e protegida por um poderoso discurso dominante, não passa de um embuste permanente, a democracia propalada pelas cabeças ocas do ocidente em decadência, é apenas hoje, uma ilusão.

Não passa de uma miragem.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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