Conhecer e reconhecer

As vozes dissonantes podem bem reclamar-se como contraponto necessário da pretensa voz única que domina as consciências institucionais e que pretende alargar (no sentido de estender) a todas as consciências, uma “globalidade” sonante, mas acrítica. O acto de conhecer acontece quando o sujeito cognoscente apreende um objecto, designado por cognoscível. A fenomenologia estuda a relação entre sujeito e objecto, no acto de conhecer, supondo o sujeito como um agente no processo do conhecimento. Embora se possa afirmar que “conhecer” é hoje um dado adquirido, ou um facto consumado, imposto pela tecnologia e também pelo activismo, a verdade é que muitas vezes ele está aquém das práticas da burocracia institucional, passando para um segundo plano, onde o primeiro (plano) é ocupado por narrativas baseadas na propaganda e numa possível “ignorância” da realidade.

Mesmo sem um colectivo de governos, instituições não-governamentais e meios de comunicação social associados, pode dizer-se que o designado ocidente tem à sua disposição arquivos repletos de detalhes dos serviços de informação. Os seus diplomatas redigem telegramas confidenciais que descrevem a realidade no terreno. Os seus jornalistas, aqueles que vão além da narrativa oficial, reportam-na. Não é então possível alegar ignorância, por eventual falta de conhecimento, na ocupação da Palestina e dos intermináveis actos israelitas de extermínio e genocídio, alguns deles já devidamente documentados e assim classificados. Apenas por conveniência, primeiro passo da cumplicidade, é possível ignorar. Curiosamente (ou não) é mesmo o que se passa com governos e administrações europeias, com honrosas excepções de Espanha, Irlanda e Islândia.

O reconhecimento vai além do saber e traduz-se num acto declaratório que eventualmente irá conferir legitimidade. No caso da Palestina, o “seu” estado foi “reconhecido” por 157 dos 193 membros das Nações Unidas. É (ou poderá ser) um acto de poder e soberania, a validação pública de uma verdade, conferindo-lhe legitimidade política e moral. O ocidente, cúmplice dos EUA, recusa a realidade e perde-se num oceano imenso de ambiguidades e declarações de intenção, caminho seguro para a hipocrisia. O simplismo, na classificação de terrorismo em quase tudo que é palestiniano, é a evidência que permanece: Estados Unidos e a designada união europeia fornecem a Israel, ano após ano, quantias astronómicas de ajuda militar e diplomática, um apoio incondicional que permite a Israel continuar a sua política impune de colonização. Entretanto, o ocidente apresenta-se como um “mediador honesto” em processos de paz armadilhados e votados ao fracasso, enquanto a ocupação persiste e o extermínio continua.

Uma questão que se deve colocar: de que serve, no momento presente, reconhecer o estado da Palestina? Um exemplo concreto poderá fornecer dados evidente sobre a matéria. O estado português reconhece a Palestina a 21 de Setembro deste ano e, três dias depois, o ministro da Defesa declara abertura para facilitar a passagem de aviões de combate para Israel através dos Açores. Esta evidência mostra que o “reconhecimento” foi um acto puramente diplomático e simbólico, desconectado de uma mudança real na política de defesa e alianças. E mais, que existe uma clara hierarquia de compromissos, na lealdade à estrutura da NATO e à sua agenda, que inclui o apoio incondicional a Israel e que se sobrepõe claramente aos princípios que deveriam estar subjacentes ao reconhecimento da Palestina. A hipocrisia é sistémica e operacional, na verdade, dois braços do mesmo governo actuam em direcções opostas, num curto espaço de tempo, mostrando que o gesto de paz é facilmente anulado pela continuidade do apoio logístico à guerra.

Muito mais coerente, sobre a questão do reconhecimento, é a posição do activista político e escritor palestiniano Naji Al-Khatib, um teórico da resistência e apoiante da Iniciativa para um Estado Democrático Único e que foi uma figura proeminente da Frente Popular para a Libertação da Palestina. Al-Khatib fez, em 1993, uma crítica feroz aos Acordos de Oslo e à Autoridade Palestiniana (AP), ao afirmar que os ditos acordos não significavam um caminho para a libertação, mas uma capitulação e uma armadilha. Disse ainda que a Organização de Libertação da Palestina passou de um movimento de libertação para um administrador da ocupação israelita, através da criação da AP, promovendo a neutralização da luta palestiniana, concedendo um simulacro de auto-governo em troca do fim da resistência armada e da normalização da ocupação. Al-Khatib rejeita a solução dos dois estados, considerando-a uma farsa que legitima a colonização sionista de 78% da Palestina histórica e confinava os palestinianos a “bantustões” desconectados no restante 22%. Para ele, a luta deverá ser sempre por um estado único, democrático e secular em toda a Palestina histórica, onde judeus e árabes palestinianos vivam com direitos iguais. Continua a defender a primazia da luta popular armada e da mobilização de massas, argumentando que o poder colonial sionista só compreende a linguagem da força e que qualquer concessão diplomática, sem poder real no terreno, é inútil.

A este propósito, o filósofo esloveno Slavoj Žižek, um leitor atento da hipocrisia liberal, sustenta que os gestos de “reconhecimento” não perturbam a ordem fundamental de dominação, sendo apenas uma forma aparente de “mudar” sem mudar nada. No caso da Palestina, o “reconhecimento” de um Estado palestiniano por parte de potências ocidentais significa, na óptica de Žižek, o gesto falso por excelência, uma forma de os estados ocidentais lavarem as mãos e mascararem a sua cumplicidade contínua (militar, económica e diplomática) com a ocupação israelita. Na verdade, uma manobra de diversão, dado que não existe “reconhecimento” sem uma pressão contínua sobre o ocupante.

Há alguns reconhecimentos que devem ter lugar em função do conhecimento da realidade. Bom seria que, por exemplo, o estado de Israel fosse reconhecido como ocupante (estado fora-da-lei) e como autor de crimes de genocídio e extermínio. E ainda, o reconhecimento da cumplicidade dos EUA e do directório não-eleito da chamada “união europeia”, em todo o apoio, evidente ou velado às políticas do governo de Israel. Se nos apoiarmos na tese do filósofo norte-americano Edmund Gettier do chamado conhecimento proposicional, a verdade dos factos, conjugada com a crença na proposição e a justificação de que mesma é verdadeira, serão suficientes para produzir o reconhecimento.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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