Avó

Inês Moreira dos Santos *

“Não acredito que existam qualidades,
valores, modos de vida especificamente
femininos: seria admitir a existência de
uma natureza feminina, quer dizer, aderir
a um mito inventado pelos homens para
prender as mulheres na sua condição de
oprimidas. Não se trata para a mulher de
se afirmar como mulher, mas de
tornarem-se seres humanos na sua
integridade.”

Simone de Beauvoir

Entrando pela casa dos meus avós adentro o mais certo é encontrar a minha avó de avental – veste-o mal se levanta e só o tira ao fim do dia quando se vai sentar no sofá a ver a novela – e, talvez, de colher de pau na mão. Ou talvez a subir e descer o escadote do quintal, para ligar ou desligar o esquentador. Escadote este que a minha irmã usava para brincar, fazia do escadote uma casa de vários andares para as Barbies e eu como degrau para me sentar a ler ou a escrever. Crescemos naquela casa, com a minha avó. O meu avô trabalhava muito, de sol a sol, era o sustento da casa. Naquela casa tudo era contado: os pães, o leite, a água, o gás, tudo contadinho para não haver desperdício porque o dinheiro custava muito a ganhar e o meu avô trabalhava mais horas do que era suposto. Naquela casa havia afecto em forma de sopa Juliana e de sacos de água quente. Naquela casa também havia um medo indizível de que qualquer coisa incendiasse. Por exemplo, a minha avó tem um ritual, diz a mesma cantilena sempre que sai de casa, ao pé do fogão, para verificar que os bicos estão desligados. “Quatro bicos e um fogão, ao alto, ao alto, ao alto,” e só depois de confirmar e reconfirmar, sai de casa. Naquela casa existiam regras claras, como quando a minha avó me chamava para almoçar, sempre com uma pontualidade britânica, às 13 horas, nem mais um minuto. Ou quando me habituei a fazer os trabalhos, sempre a seguir ao lanche, sempre, quando chegava da escola, por volta das quatro e meia. Naquela casa existe a melhor cozinheira do mundo, que faz as melhores sopas do mundo, com as melhores costeletas grelhadas do mundo, feitas no melhor fogareiro a carvão, no melhor quintal. Parece que a estou a ver, a abanar o carvão, com um abanico feito à mão pelo meu avô. O meu avô costumava dizer-me em surdina que a minha avó era a generala lá de casa. E é um facto que administrava as nossas vidas melhor que um maestro à frente de uma orquestra. Entrando pela casa dos meus avós adentro, cheia de molduras e tigelinhas e pratos e cacaréus comprados com o objectivo de embelezar a casa, o mais certo é encontrar o calor de uma vida dedicada aos outros.

Quando era nova, a minha avó tinha o cabelo aos caracóis, pretos, era pequenina, com a carinha magrinha, parecia uma boneca de cera. Vestia-se bem, sempre toda aprumadinha, calçava-se com aqueles saltos pequeninos de quem não quer dar muito nas vistas, e vestia-se sempre com as pernas tapadas. Era assim que mandava a etiqueta. Tinha sido educada assim, com todos os preconceitos e ideias de outros tempos. Acabou a quarta classe e foi para uma escola aprender a ser mulher, a cuidar. Aprendeu a ser submissa, foi moldada para isso. Podia ter tido pior destino, diz-me ela, a sorrir, sabendo o que eu penso dos costumes da altura, porque hoje tenho liberdade para pensar, podia ter ido para o campo trabalhar, e estava grata por ter frequentado aquela escola e aprender costura e outras coisas de que só as mulheres precisavam saber. Porque é que só as mulheres precisavam saber? – perguntava-lhe eu. Porque há coisas que os homens não sabem fazer – respondia-me ela. “Nasceram com menos qualquer coisa?” – perguntava-lhe eu a rir a bandeiras despregadas. “Não está na natureza deles, agora ver um homem a coser, disparate!” – respondia ela. A minha avó teve uma vida feliz, perguntem-lhe, ela responderá que casar com o amor da sua vida trouxe-lhe tudo quanto ela sonhou. Também não podia sonhar muito, a verdade é essa. A vida toda condicionada por ser mulher, a verdade também era esta. E ser mulher no tempo dela implicava cuidar da casa e ter filhos e cuidar deles. Cuidar dos netos. Não sabia fazer mais nada senão cuidar, cuidar, cuidar! Teria sonhado com medicina, ser médica! A minha avó sempre se contentou com o que tinha e amou todos de quantos cuidou. Nunca se amargurou, nunca se revoltou, seguiu sempre feliz, sempre alienada do que era de facto ser mulher. Dizem que tudo o que fez foi por amor, e foi, mas foi por este amor que era suposto dar porque nasceu mulher. Olhando para trás, julgo que substituiu a palavra “eu” por “outros” no seu vocabulário.

Nunca contabilizei o número de horas que a minha avó dedicou aos trabalhos de cuidado, mas consigo assinar por baixo de um qualquer documento que diga que foi toda a sua vida adulta.

A minha avó, aquela que nunca “trabalhou”, deu o suporte a uma família inteira para irem eles trabalhar, ganhar dinheiro, enquanto ela ficava em casa no trabalho de cuidado. Lembro-me de ser pequena e perguntar à minha avó porque não ia trabalhar. Mal sabia eu que não há no mundo outro trabalho que seja de maior responsabilidade que educar uma criança. Nunca contabilizei o número de horas que a minha avó dedicou aos trabalhos de cuidado, mas consigo assinar por baixo de um qualquer documento que diga que foi toda a sua vida adulta. A minha avó aprendeu a cuidar. Foi a tarefa da vida dela. Primeiro as filhas, depois os netos e sempre o marido. Arranjava-lhe o lanche, passava-lhe a ferro, possibilitando que ele fosse para a rua trabalhar de sol a sol. Foi sempre boa mulher, diz-me ela com tanto orgulho quanto pode caber numa frase. Foi, sobretudo, a mulher que me deu estrutura, e isto é dizer obrigada.

O meu avô dizia-me que sem a minha avó a apoia-lo – que é como quem diz, a fazer-lhe tudo – nada seria possível. Não teria sido possível ao meu avô trabalhar tanto e não teria sido possível a sua resistência ao estado novo. Esta cooperação foi fundamental para a atividade política do meu avô e os tempos eram outros. Vivíamos numa ditadura, e a minha avó (e outras mulheres) não tinham espaço para pensar no certo e no errado. Acaba por ser irónico, um círculo completo: a educação das mulheres para servir, que Salazar tanto queria, foi o que permitiu aos homens resistir-lhe. Se a minha avó, e tantas outras avós, tivessem tido tantas oportunidades quanto os homens ou quanto as mulheres de classes sociais mais altas, a vida teria muito menos desigualdades e os homens não se achavam donos das mulheres, pelo menos não tanto. Mas Salazar não quis assim, e era Salazar que decidia. O espaço público sempre esteve vedado a mulheres que, como a minha avó, e várias outras, se limitaram pelo trabalho do cuidado e pela esfera privada. Acordar, cuidar da casa e dos filhos, almoço a horas, jantar a horas, passar a ferro, cuidar dos netos. Se quisermos uma pessoa para fazer isto em nossa casa pagamos, e muito. Era assim, e agora ainda é na maioria das casas, com a diferença de que agora a maioria de nós, mulheres, trabalha. E quando chega a casa ainda tem um sem fim de trabalho não remunerado pela frente. E depois existe ainda a sobrecarga mental. Alguém precisa de dizer às mulheres que são super-heroínas e aos homens que o que eles fazem não é assim tão especial se não precisam preocupar-se com mais nada.

Reprodução de foto Jean Dieuzaide, Portugal, anos 50.

O sexo biológico não é o único responsavel pelas condições de vida, as relações sociais e económicas construídas ao longo da história também são respoonsáveis pelas mesmas condições de vida, e, sobretudo, as relações de género. Nascer homem ou nascer mulher tem mais peso do que devia, ainda, tem muito impacto no que ao futuro diz respeito, nas expectativas, nas relações que estabelecemos com uns ou com outros. Ainda é diferente uma mulher relacionar-se com uma mulher ou com um homem. Se uma mulher é vista a beber café com um homem, há logo mexericos. De pequenino é que se torce o pepino, ouço eu dizer. As relações sociais entre os sexos também se começam a escrever em pequeninos. Barbies para as meninas, carrinhos para os meninos. A menina, quando grita, é histérica. O menino, quando grita, é macho. “Quantas namoradas tens?”, pergunta o pai ao menino. O menino apalpou o rabo da menina? Ah machão. À menina oferece-se esfregonas para ela brincar, já a prever esse tão-bom-destino que é ser responsável pela casa. Ao menino oferece-se bolas de futebol com a esperança de que seja o próximo Ronaldo. O português ou o brasileiro, pouco importa. As meninas devem ser passivas, dóceis, sensíveis e frágeis, e os meninos devem ser o contrário para assumir a sua masculinidade.

É muito conveniente a um homem ter uma mulher a fazer-lhe tudo, a sustentar um “bebé” que devia ter crescido. Permite-lhe sair de casa e desenvolver todas as suas potencialidades.

O trabalho doméstico pode ser entendido como o trabalho em casa – limpar, cozinhar, cuidar dos filhos e lavar a roupa. Isto é, devido às desiguais relações de sexo, principalmente no que se refere à divisão sexual do trabalho, as mulheres são vistas como responsáveis pelas tarefas domésticas, pois são consideradas como “tarefas de mulher”, intrínsecas à personalidade feminina. O trabalho doméstico é considerado um trabalho invisível, não remunerado, não reconhecido na sociedade e sintoma da sociedade patriarcal onde vivemos e fomos educados, pois é considerado um atributo das mulheres. Invejável, dizem, mas o que é certo é que nenhum homem o quer fazer. Somos doutrinadas assim. Deves saber cuidar da casa, dizia-me a minha avó. E eu sentia-me com qualquer coisa a menos por não saber fazer comer. Como se um homem não tivesse as mesmas mãos que nós, mulheres. Como se um homem não conseguisse fazer comida ou lavar o chão. O trabalho doméstico é considerado uma coisa natural das mulheres, porque sustenta o mundo machista e capitalista. É à mulher que cabe este sustento em forma de cuidar da casa, do marido e dos filhos, sobrecarregando-a. É muito conveniente a um homem ter uma mulher a fazer-lhe tudo, a sustentar um “bebé” que devia ter crescido. Permite-lhe sair de casa e desenvolver todas as suas potencialidades. Esta infantilização do homem também é prejudicial para o homem, que fica sempre preso a uma mulher, ora a mãe, ora a esposa. A divisão sexual do trabalho, ainda que esteja mais justa hoje em dia, diminuindo as desigualdades entre homens e mulheres, não se alteraram o suficiente e o trabalho doméstico ainda recai sobre a mulher. Nunca ouvi de nenhum homem o sentimento de culpa por ter deixado coisas por fazer em casa. Assim, apesar das mulheres terem conquistado alguns direitos, a desigualdade homem/mulher ainda é verificada no que ao trabalho doméstico diz respeito.

Se me perguntassem se queria ter crescido de outra maneira eu diria que não, não há nada melhor do que crescer com o afecto de uma avó dedicada. Mas a que custo eu cresci assim? Sob que educação foi a minha avó criada para entender que era o propósito da vida dela criar crianças? Não devem os homens ser responsabilizados pela casa, de maneira a que mulher consiga desenvolver-se plenamente fora de casa? Quererão os homens, na sua totalidade, que haja igualdade? Ou preferem não ter de se preocupar com a casa e com os filhos? Estas e outras perguntas que teimam em não ser respondidas. Estes e outros problemas que teimam em não deixar a mulher desenvolver-se plenamente. Tanta estrada que nos falta para andar.

(Imagem capa: “Avó é a melhor”, de Max Rentel. Alemanha séc XIX.)

About the Author

Ines Moreira dos Santos
* Nascida e criada no Ribatejo, rumou a Lisboa, e por lá se licenciou em Psicologia. Fez d´O Segundo Sexo o seu livro de cabeceira e do avô o seu herói. Mãe de três, ativista a tempo inteiro, colunista. Fascinada pelo mundo e pelas pessoas que nele habitam. Acredita na igualdade e sonha com um país onde se cumpra a Constituição.

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