As “novas sereias” da “estabilidade” e da “segurança”

Alfredo Soares-Ferreira *

Existe hoje um movimento acelerado de perda e sentido, provavelmente uma sedução do esquecimento, na forma como nos relacionamos com a realidade, ou na ausência de atitude perante o desvio das questões essenciais. Estaremos perante uma cultura contemporânea que nos afasta da essência das coisas e que fica no limite da superficialidade, embotando as consciências e obstruindo a crítica? Na verdade, as análises parecem ser orientadas num sentido vertical e desprovidas de racionalidade instrumental, não estimulando a reflexão crítica. No horizonte aparecem novas formas modernas de sedução que, operando nos sistemas de capitalismo avançado, parecem querer substituir as antigas ameaças mitológicas por mecanismos subtis de dominação. O propósito é sempre o mesmo e resulta em novas crenças e dogmas, que serão absorvidos pela sociedade, com formas primárias de discurso e todos os suportes possíveis e imaginários de propaganda.

A originalidade da ideia das “novas sereias” pertence ao cineasta e crítico social alemão Alexander Kluge, um intelectual que privou com Theodor Adorno e Fritz Lang e que impulsionou o Movimento Oberhausen, um manifesto dos anos sessenta que constitui uma revolta geracional contra as normas culturais conservadoras e revitalizou o cinema alemão como meio de expressão artística e política. Para Kluge as “novas sereias” representam os sistemas e discursos que capturam a atenção, o desejo e a subjectividade humana nas sociedades contemporâneas, mascarando quase sempre relações de poder sob a aparência de entretenimento, progresso ou conveniência. Quer na indústria cultural, quer na burocracia estatal, nas formas e variações do capitalismo neoliberal, sobressaem a lógica do consumo, a mercantilização da vida e a promessa de felicidade através de bens materiais, enquanto na comunicação social burguesa abundam as narrativas alienantes. Na sua obra de 1977, “Neue Geschichten, Die neuen Sirenen” (em português, “Novas Histórias, As Novas Sereias”), nos Cadernos 1–18, Kluge evoca a mitologia grega, usando-a para explorar temas como a sedução da tecnologia e a alienação na sociedade moderna. As “sereias” simbolizam assim uma espécie de atracção fatal pelo consumismo e, objectivamente, por sistemas de poder que prometem vida fácil, mas que contêm características destrutivas. Eis, pois, o panorama. Elas (“sereias”) falam de forma convicta da “estabilidade” e da “segurança”, pensando que nós pensamos que estão a falar da estabilidade e da segurança. Porém, para a grande maioria dos cidadãos, a estabilidade tem a ver com o seu emprego e a sua habitação. E, a segurança diz respeito à forma como se vive no seu bairro e ao respeito pelos seus bens. Para essa maioria, o discurso das “novas sereias” pouco ou nada diz. Todavia, elas continuam e massacram-nos a toda a hora com a mesma recorrência: a estabilidade é precisa, porque é preciso estabilidade, a segurança é necessária porque em Portugal não há segurança, a segurança na Europa é precisa porque os russos ameaçam e, como tal, é preciso combatê-los. O nosso País tem uma imensa constelação de sereias, nos dois Partidos que se consideram proprietários do sistema e que disputam o Poder de forma enviesada, acusando-se mutuamente de não promoverem a “estabilidade” e de não se orientarem segundo o “interesse nacional” que, para ambos, está acima do “interesse partidário”. O cúmulo do ridículo atinge-se quando um deles afirma que o outro tem obrigação de preservar a “estabilidade”, porque o primeiro já fez o mesmo, “deixando passar” o programa de governo e orçamento. Da mesma forma atravessada, se invectivam mutuamente de falta de responsabilidade, que nenhum deles detém, parecendo a “arena política” (asserção mais que enganosa) um jardim infantil.

O pensamento simplório e a pobreza linguística andam de mãos dadas com o intelecto reduzido das “novas sereias”. A linearidade, no pensamento e na acção, é o traço característico principal das “sereias” e dos seus receptáculos.

Não existe a mínima intenção de analisar e discutir as questões com que os cidadãos se debatem, mas sim a mera e balofa vontade de ficarem pela pobre e mirífica solução de um “acordo de regime”, já avançado pelo inefável Presidente.

Eles lutam entre si pela “maioria absoluta”, ou por uma “maioria qualificada”, que lhes permita desbobinar a sua cartilha de intenções securitárias, sempre na “estabilidade”, porque admitem que o povo anónimo que fala nas sondagens a tem como verdade insofismável.

Muito embora quem fala hoje de “segurança” tenha, apenas e só, em vista o alerta para uma hipotética invasão russa, o certo é que o tema tem uma validade e uma preocupação históricas, tradicionalmente ligado à defesa militar e à soberania do Estado, como “ameaças” não-militares, a pobreza e discriminação, as mudanças climáticas, as violações de direitos humanos e a segurança alimentar. A segurança deve ser interpretada como um conceito dinâmico e multidimensional, que se adapta a toda a tipologia de transformações, com um objectivo claro de garantir a protecção e o bem-estar aos cidadãos e não num sentido restritivo e acéfalo. A obsessão dos burocratas ocidentais por “segurança”, equivale à pulsão pela sujeição e controle e pela adopção de normas restritivas de acesso à participação e intervenção no espaço público. A exploração e interpretação do binómio “Segurança/Estabilidade” implica a desconstrução sistemática da aparente harmonia entre os conceitos. Para tal será necessário mostrar como eles operam em tensão, controle e potencial de transformação. Na lógica dominante, a “segurança” é associada a sistemas de controle que garantem “estabilidade”, disso sendo exemplo, as instituições, a vigilância e as leis. Numa lógica alternativa deveremos equacionar novas variáveis que permitam criar na estrutura social novas formas de cooperação, tendo como base um pensamento afirmativo que valorize a criação e a multiplicidade de conceitos.

Existem hoje diversas redes de apoio mútuo que podem consubstanciar alternativas à concepção de sistemas centralizados de vigilância. Essas redes, espalhadas por muitos países, prevêem a construção de sistemas anti-autoritários e inclusivos que se regem pela lógica da confiança e colaboração e que oferecem alternativas para reduzir a dependência de estruturas opressoras e centralizadas. As decisões do que é popularmente designado por ZAD (Zonas A Defender) são tomadas em assembleias horizontais. Sobre a matéria, valerá a pena ler o artigo de Frédéric Lordon, no Monde Diplomatique de Outubro de 2019, onde o Autor se interroga “Pode a “zona a defender” salvar o mundo?”.

Na “zona a defender” existe um escudo protector ao encantamento das “novas sereias”.

[Imagem: Ulisses e as Sirenes, Herbert J.Draper]

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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