Agonia do riso

Temos por hábito parar para pensar quando acontece o inesperado, ou quando um qualquer cataclismo se abate sobre nós. Uma atitude reflexiva, saudável e própria do ser pensante, que leva a adopção de medidas, que podem ser as mais variadas, desde a defesa pessoal e de grupo, até ao ataque frontal de consequências (im)previsíveis. Pelo meio ficarão outras, incluindo a resistência passiva, muito em moda nos anos sessenta, particularmente em França e nos EUA, um marco histórico associado a movimentos sociais que utilizaram estratégias não violentas para combater a opressão, as desigualdades e o autoritarismo, particularmente no contexto dos direitos civis, da luta contra a guerra e movimentos anticoloniais. Este tipo de resistência oferece um paralelo interessante, no uso do humor e das artes performativas como formas de desafio ao poder. Alguns formatos, como boicotes, marchas e protestos pacíficos, conduziram e envolveram manifestações de desobediência civil, incorporando muitas vezes humor, música e outras acções para criticar o sistema estabelecido, entre as quais ficou célebre a nomeação de um porco para presidente dos EUA em 1968. O estilo assumido de uma contra-cultura teria uma expressão assinalável nos estudos do filósofo da linguagem e historiador russo, Mikhail Bakhtin, um verdadeiro pesquisador da linguagem humana e dos comportamentos individuais e colectivos. Não esquecer ainda que as acções de resistência passiva dependiam de participação coletiva, criando identidades comunitárias fortes, como aconteceu no movimento pelos direitos civis, onde igrejas e universidades eram verdadeiros centros de organização.

A cientista política belga Chantal Mouffe, que desenvolve trabalhos de investigação na área da teoria política, contribui para a definição da teoria do agonismo que, em certa medida prioriza uma espécie de antagonismo, afirmando que a democracia deve transformar conflitos hostis, em agonismos, ou seja, conflitos produtivos, onde os adversários se reconhecem como legítimos. O agonismo seria assim uma espécie de terceiro tipo de relação, onde as partes em conflito reconhecem a legitimidade do seu oponente. Assim sendo, o agonismo valoriza formas de expressão que desafiam a ordem existente, como protestos, arte ou humor, o que torna a teoria de Mouffe aplicável a movimentos sociais e ao uso do humor como resistência. Agonístico é, de certa forma, um programa de televisão, da autoria do actor e apresentador de televisão Bruno Nogueira, com o título “Ruído“, para a qual a Revista Sete propõe o seguinte exercício de imaginação: “o que aconteceria se, num tempo distópico qualquer, a liberdade para fazer comédia fosse restringida? Se as pessoas não pudessem rir-se publicamente, sendo o riso um reflexo, uma contracção muscular impossível de controlar? Os resistentes, um grupo de argumentistas e actores, criam um movimento para continuarem a fazer comédia e as pessoas poderem rir sem restrições”. Na verdade, em “Ruído”, o humor dos sketches clandestinos é um acto de resistência contra a lei repressiva que proíbe o riso. Essa resistência é agonística porque desafia o poder estatal sem violência, criando um espaço de luta cultural onde os comediantes afirmam a sua liberdade de expressão. Fica para descobrir, entretanto, se o humor busca destruir o sistema, ou apenas, questioná-lo. Se classificarmos “agonia do riso” como a tensão entre o prazer de rir e o risco de repressão, poderemos encontrar em “Ruído” e no caso do porco americano atrás referido, exemplos perfeitos de agonismo. O riso é um acto de resistência que provoca desconforto, mas também abre espaço para diálogo e reflexão, alinhando-se com a visão de Mouffe de que o conflito é essencial para a vida em sociedade. Da mesma forma podem ser agonísticos os casos de resistência passiva dos anos sessenta, os protestos dos hippies ou do movimento pelos direitos civis americano, por desafiar os sistemas opressivos de segregação e militarismo, apesar de não colocarem em causa a destruição total do adversário. A Marcha sobre Washington de Martin Luther King, em 1963, usava a não violência para exigir inclusão democrática, um princípio claramente agonístico.

O acto aparentemente inócuo de rir pode passar rapidamente a iníquo, por ser eventualmente considerado injusto, em circunstâncias determinadas. A aparente passividade da exigência do Maio de 68 em Paris,

passou de imediato para um desafio ao governo De Gaulle, sendo aqui a “injustiça” uma metáfora à ordem burguesa. De outra forma, os activistas de Birmingham enfrentaram a violência policial, mas mantiveram a não violência, usando a dignidade e por vezes o humor em canções, para expor a injustiça, aqui sem qualquer metáfora, uma vez que a campanha contribui para a aprovação do Civil Rights Act, no ano seguinte, que proíbe a discriminação com base na etnia, religião, sexo ou nacionalidade. Poder-se-á questionar se existe, ou se deverá instituir-se uma mobilização emocional contra a dominação e a repressão, utilizando o riso como arma de descaracterização massiva. Procurar e incentivar exemplos significativos pode ser uma tarefa mobilizadora. Bastaria citar os excelentes e inspiradores exemplos das produções do grupo Monty Python, ou as séries “Allo Allo”, de David Croft e Jeremy Lloyd e “Little Britain”, de David Walliams e Matt Lucas.

Vale a pena voltarmos ao já citado Bakhtin e às acções que ecoam no seu “riso carnavalesco”. A obra “Rabelais and His World”, de 1965, dedica-se ao estudo do escritor e romancista francês do Renascimento, François Rabelais, para explorar como o riso, o grotesco e a cultura popular do Carnaval desafiam hierarquias sociais e criam um espaço de liberdade e subversão. Nela poderemos encontrar, a abolição da hierarquia, durante o Carnaval, e de serem mesmo suspensas as leis, proibições e restrições e os padrões determinantes do sistema e da ordem quotidiana. E ainda, que o elemento que unifica a diversidade de manifestações carnavalescas e lhes confere a dimensão cósmica é o riso, um riso colectivo que se opõe ao tom sério e à solenidade repressiva da cultura oficial e do poder real e eclesiástico, que até não se limita a ser negativo e destrutivo, mas, antes pelo contrário, promove o rir em liberdade anti-dogmática. Bakhtin caracteriza o riso como universal, libertador, ambivalente e regenerador.

Rir, como melhor remédio. Rir da graça e da desgraça. Rir de nós mesmos, um sinal de inteligência. Rir dos outros, sim, um direito universal, consagrado ou não em qualquer constituição, neste momento particular um possível remédio para o desconforto, suportando uma carga emocional com destino previsível. Se tudo parecer perdido poderá restar o riso, uma arma intemporal, que atravessa o espaço e o tempo, para se reverter em indignação quando for o tempo. Pode ser agora.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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