Alfredo Soares-Ferreira *
“Si he perdido la vida, si he perdido la voz
Si he sufrido la sed, el hambre…
Me queda la palabra”
“En el principio”
Blas de Otero, 1955
Parece ter-se instituído, desde o início da semana, um ataque à dignidade da palavra com
uma série de exercícios factuais que convocam desejos e vontades para a liquidação do seu
valor intrínseco. Partindo do princípio universal que confere à palavra um poder que apela
à reflexão, à exigência e à liberdade, somos obrigados a ponderar sobre a acção dos que a
conspurcam a todo o momento, alterando o seu valor e o seu poder. A utilização da palavra
com a finalidade espúria da propaganda tem sido frequente nos regimes que se intitulam
“liberais” e “democráticos” e que há muito estão a contribuir para a liquidação de valores e
princípios, levando os cidadãos à condição de simples receptores.
Há mais de vinte anos, José Saramago escreveu um interessante texto a que chamou “O
nome e a Coisa” e que foi a base da sua intervenção no 1º Fórum Social Português,
realizado em Junho de 2003. O referido texto foi publicado em Julho desse ano na edição
portuguesa do Monde Diplomatique. Recorda-se desse ano, a designada Cimeira das Lajes,
nos Açores, onde Durão Barroso recebeu Tony Blair, George W. Bush e José Maria Aznar
para acertarem a invasão do Iraque, que viria a acontecer no mês de Março, a pretexto da
percepção de armas de destruição maciça naquele País. A recordação de um episódio
lamentável protagonizado pela mesma aliança que cavalgou até aos nossos dias numa
manifesta agressão às consciências, não é despicienda pelo que tem de seguimento lógico
da vontade imperialista de liquidação da palavra, no sentido da sua captura e posterior
cancelamento. Saramago falava nesse texto na “operação cosmética barata” que é
pretender nomear algo que simplesmente não se encontra onde se nos quer fazer crer,
reportando-se ao vazio que é o designado “poder democrático”. Hoje, afirmava o Autor em
2003, “o sistema de organização social que até agora temos designado como democrático
tornou-se cada vez mais uma plutocracia e cada vez menos uma democracia”. A perversão
do verdadeiro significado de democracia promove hoje, como há vinte e dois anos, uma
sociedade iníqua, onde se constata uma reconfiguração dos vocábulos, para induzir no
senso comum novas interpretações da palavra, tornando-a numa “coisa” com outros
sentidos, para adulteração e consumo imediato.

O realce dado à iniciativa designada Cimeira de Emergência de Paris serve, numa primeira
fase, para tentar ensaiar um posição conjunta da Europa face às investidas de Trump,
concretamente em relação à guerra na Ucrânia. Os “mesários” são os líderes europeus
reunidos a 17 de Fevereiro que, pelos vistos, teriam sido apanhados de surpresa e
manifestaram vontade em contribuir para a paz, enquanto incentivam a guerra total,
apostando milhares de milhões na derrota da Rússia, com o sacrifício global e com a
vontade de investir em mais armamento e mais guerra. A palavra destes “órfãos de
Washington”, como lhes chamou José Goulão num recente artigo, é ajustada ao discurso da
“segurança” dos “valores europeus”, posição do ministro “socialista” espanhol, ou à não
aceitação de pessoas que “intervêm na nossa democracia“, do chanceler alemão. Todos com
a sua conotação própria, mas unidos na tese primária de que a Rússia não pode ser
premiada pela invasão da Ucrânia. O que é facilmente constatável é o valor da palavras das
pessoas sentadas naquela mesa. As mesmas que despejaram sobre os cidadãos
propaganda russófoba e promoveram impunemente o cancelamento de artistas e clássicos
da literatura, cinema, música e desporto russos. Os “mesários” são honrosos herdeiros dos
responsáveis pela negação da possibilidade de um acordo a Leste, quando enterraram, em
2015, o Protocolo de Minsk do ano anterior. Ficou assim provado que a palavra não tem
qualquer valor, a não ser o da mais completa deturpação da verdade histórica, o “acordo”
era só para entreter os russos e armar a Ucrânia, assim viria a afirmar, em Dezembro de 2022, Angela Merkel, com a confirmação posterior de François Hollande: “quem esteve de
má-fé nessas negociações de paz foram os intervenientes políticos do Ocidente”. Por tudo isto
e não só, tem toda a pertinência a palavra da representante oficial do Ministério dos
Negócios Estrangeiros da Federação Russa, Maria Zakharova, quando afirma que os líderes
europeus traíram os interesses da Europa e essa traição é uma das razões da tragédia da
guerra.
Num texto publicado a 15 de Fevereiro, no blogue Estátua de Sal, a que chamou “O
esplendor da oligarquia”, Carlos Matos Gomes tem uma palavra especial para o vice-
presidente norte-americano e, ao mesmo tempo, para os “mesários” de Paris. Depois de
dissecar a crueza incómoda de JD Vance, a propósito de oligarquias, o Autor questiona-se
se alguém acredita “…que este painel de burocratas seja capaz de enfrentar os oligarcas
norte americanos, russos ou chineses, que algum deles vá morrer onde for preciso combater
os oligarcas russos e defender o “democrata” Zelensky”.
Se é natural que o estado de empatia geral esteja verdadeiramente comprometido e que os
trabalhadores se sintam cada vez mais diminuídos, atacados nos seus direitos
fundamentais e vendo cerceada a sua participação cidadã, também é verdade que há vozes
que se levantam e que se manifestam subvertendo a ordem burguesa, única forma de
imporem o seu poder. Quando se perde a vida, a voz e o tempo e só resta a palavra, como
no poema de Blas de Otero, é tempo de a defender e de a impor como porta-voz da
insubmissão colectiva. Quando o primeiro-ministro britânico diz que está “pronto para
colocar tropas no terreno na Ucrânia” podemos avaliar a qualidade da palavra que é a
antítese da que defendemos, com a serenidade e o rigor necessários para as lutas que se
avizinham.
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