A bota e a farda como imagem

Alfredo Soares-Ferreira *

Quando não tem mais nada para “oferecer” que um símbolo, uma qualquer veste camuflada, imagem de um poder de autoridade travestida, mal vai decerto quem se pretende candidatar ao mais alto cargo da chefia do País. Contudo, é sobretudo o autoritarismo (e não propriamente a autoridade) que está presente na imagem da bota e da farda e é ela que determina o personagem, que de ideias é completamente vazio e apenas pretende deixar a mensagem “…quantos anos seriam precisos para endireitar isto”. Na verdade, a estas suas declarações em Junho de 2021, associa ainda o que diz ser a “cultura do português”, que o “chateia” e que quer então “endireitar”. Se “…as pessoas estão mais preocupadas com a sua posição do que com aquilo que devem fazer“, é necessário o tal homem (tem que ser mesmo um homem) providencial que emerge como presuntivo salvador da pátria. Conhecemos bem esta narrativa e basta. Quer para o definir, quer para saber o que pensa, sendo, neste particular, que nada pensa além do que pensava há três anos.

Interessa agora saber o porquê desta candidatura. Não só o porquê, mas também como ela se foi alimentando, até um crescimento pouco usual em casos semelhantes. Recuando a Março de 2021, altura em que foi nomeado comandante da designada Task Force para o Plano de vacinação contra a COVID-19 em Portugal, observamos uma trajectória ascendente, contudo propositadamente amplificada por aqueles que acreditaram que somente um militar seria capaz de gerir uma empresa como aquela. Aliás, quando entrou, já estava delineada uma estratégia, tendo o homem providencial cumprido um plano estabelecido a priori. Mas, evidentemente, que “não era qualquer militar que fazia aquilo”, assim o declarou a 5 de Dezembro à comunicação social, afirmando a propósito que a campanha de vacinação não foi só logística. Para uma informação completa e circunstanciada e para perceber os contornos da questão, nada melhor que o artigo de António Garcia Pereira, no NoticiasOnline de 28 de Novembro, com o título “Gouveia e Melo: o “messias” da marinha ou o naufrágio da democracia?” Aqui se conta quem é o personagem, bem como um interessante percurso de promoção pessoal, com o apoio de alguma comunicação social sempre pronta a promover o espectáculo e onde o Autor refere a “construção do mito”, preparada e construída “…pelo Partido Socialista, pela mão de António Costa e do seu Governo”.

Na verdade, nos tempos que correm, o que conta acima de tudo é estruturar um marketing político forte, bem elaborado e capaz de actuar em todos os segmentos do eleitorado. Uma visão tecnocrática, que passa por pesquisas e sondagens e que é desenhada e arquitectada com base em determinadas frases-chave, capazes de atingir um público-alvo previamente determinado. Ou seja, exactamente o mesmo que se faz para vender um produto ao consumidor, presunção fundamental de sucesso. Aqui, mesmo considerando que a qualidade do “produto” deixa muito a desejar, o putativo “consumidor” vai ser mesmo enganado pela insustentabilidade de uma aura que não se adequa ao perfil que se pretende impor.

Walter Benjamin dizia, na sua obra “On the Concept of History”, que a história é o sujeito de uma estrutura cujo lugar não é o tempo homogéneo e vazio, mas o tempo preenchido pela presença do agora. O agora de hoje, passe a figura de estilo, é a mancha sombria da desesperança, temperada de quando em vez por uma imagem pálida de desencanto e apensada por uma simbologia que pretendemos execrar. É o caso da imagem da bota e da farda, símbolos do poder do camuflado, do autoritarismo e da verdade única. A possível limitação, associada a esta simbologia redutora e reaccinonária, traduz-se na incapacidade de ver um pouco mais do que aquele “que vê o mundo com os olhos que tem”, uma asserção proverbial de Saramago, inscrita na sua “Jangada de Pedra”. Passando a palavra, sem ser o verbo de encher que nada tem para dizer a não ser o arengar fastidioso e podre da mais rasteira sentenciação, poderemos contribuir porventura para um nível superior de conhecimento que arraste de vez a verborreia do personagem, bem como de quem o sustenta e eventualmente o venha apoiar.

No terreno ficará então uma espécie de corda-bamba onde qualquer exercício que resulte da deslocação dos equilibristas do costume depende da vontade própria do sujeito que se diz o único capaz. E, para o mal e para o bem (conforme a perspectiva de análise) ficará o personagem da submissão e do autoritarismo, mesmo que sozinho em palco a vociferar banalidades com o camuflado vestido e a bota a bater os calcanhares. Ainda que consiga arrecadar favores do caciquismo vigente é muito capaz de não conseguir agregar os donos das prebendas para um desequilíbrio favorável.

Não há equilíbrio que o sustente.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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