A abjuração da conjunção adversativa

Alfredo Soares-Ferreira *

O aparecimento de um estilo, cuja identidade é a recusa do “mas”, nas expressões falada ou escrita, ameaça passar de estilo a prática nefasta. A conjunção adversativa é utilizada quando o intérprete quer expor uma ideia contrária à inicial, como por exemplo, “eu bem queria ir ao cinema, mas estou sem dinheiro para comprar o bilhete”. Reside aqui muito provavelmente uma atitude de centrar na afirmação absoluta e determinada, que resulta em expressar uma qualquer tese ou ideia, sem o devido contraditório. Em concreto, existe sempre um “mas” associado. Sem “mas”, para nada serve o diálogo. Sem “mas”, em termos práticos, não existe discussão. Todavia (mais um “mas”) é mesmo capaz de ser isso que pretendem os novos arautos da industrialização das consciências.

Nem mas, nem meio mas”, uma expressão muito típica no nosso País, é precisamente a abjuração da conjunção adversativa. Utilizada sobretudo quando alguém quer impor a sua posição, não admitindo qualquer discussão, ou seja, nenhum “mas”.

Temendo-se o pior na mais que fustigada Faixa de Gaza, a primeira sensação foi – ou ainda será – a condenação dos actos terroristas, sem “mas”, do assim designado “grupo terrorista Hamas”. Ao contrário, o agressor que ocupa ilegalmente a Palestina, ano após ano, da forma mais abjecta, é designado como Estado de Israel e a quem é reconhecido o “direito à defesa”. Aliás, segundo alguns, à “legítima defesa”. É preciso entretanto dizer claramente que o Estado de Israel é um estado fora da lei, porque não cumpre as resoluções (já perdemos o número) das Nações Unidas e que se julga no direito, quiçá divino, de não reconhecer a Palestina e de, antes pelo contrário, a ocupar de forma arbitrária, através da instalação de colonatos. O Estado de Israel não é, de facto, uma democracia, uma vez que não reconhece o direito de voto aos 5 milhões de palestinianos, que estão sob ocupação.

Veja-se o caso de António Guterres, Secretário-Geral da ONU. O seu “mas” já lhe valeu a fúria do Império, com Israel à cabeça e o silêncio cúmplice dos EUA e da UE.

O sociólogo suíço Ernest Goldberger partilha a tese de que Israel não é uma democracia, mas sim um “Estado totalitário“, um país que não tem constituição, onde a religião é fortemente determinante na vida das pessoas e onde os árabes israelitas são discriminados institucional e socialmente. Na verdade, aos árabes que vivem na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, não lhe são concedidos os mais elementares direitos.

Cai assim por terra o argumento dos que pretendem defender a tese que existe um conflito e uma guerra entre um “grupo terrorista” e uma “democracia”. Existe sim, uma ocupação ilegal.

Bem mais sensato seria sustentar que não é possível escolher entre dois lados, dado ser insustentável descortinar algum sentido em qualquer um deles. Ou até, no limite, aglutinar os dois num só. Na verdade, há muito que se sabe quem imaginou, ajudou a formar e apoiou o Hamas. Também cai por terra a questão da “representação”, pois se aquele grupo não é representativo dos palestinianos, o governo infame de Netanyahu não será decerto representativo do povo de Israel. Entretanto, há que dizer que o que está a acontecer na Faixa de Gaza não é nenhuma “legítima defesa“, mas sim um ignóbil acto de vingança contra cidadãos palestinianos encurralados. É essa também a opinião do filósofo português Viriato Soromenho Marques, que, lembrando o assassinato de Yitzhak Rabin, em 1995, pelo fanático religioso Yigal Amir, fala na ideia do Grande Israel, que classifica como uma “distopia teológica”, que significa liminarmente a expulsão e/ou genocídio de todos os árabes de uma “terra prometida“, acessível apenas aos escolhidos da sua Revelação.

Foto [editada]: ONU News

Sabe-se como a Poesia interpreta o sentimento dos povos. Ao ler o palestiniano Tawfik Zayyad, poeta de resistência, que escreveu a maior da sua obra na prisão, conseguimos perceber a sua mágoa com a ocupação: “Somos os guardiões da sombra // Das laranjeiras e das oliveiras …//Nossos nervos são de gelo//Mas nossos corações vomitam fogo //Quando tivermos sede//Espremeremos as pedras//E comeremos terra//Quando estivermos famintos// Mas não iremos embora…”.

Há um conceito em ciência política, designado “efeito underdog”, ou efeito do oprimido, que reporta à identificação com pessoas em situação desfavorável. O termo que, em português, significa “perdedor”, poderá aplicar-se na actual situação do extremo-oriente, particularmente no que toca a uma sensibilização pelo que está a acontecer, na defesa do lado mais fraco. Recorde-se que, até agora, a ofensiva de Israel já provocou mais de 6 mil mortos e que quase metade são crianças, números que ultrapassam, desde 7 de Outubro, a soma dos últimos 23 anos. E a desproporção é desta ordem, segundo números da ONU: entre 2008 e 2020, morreram mais de 5000 palestinos e 259 israelitas.

Sim, há e deve haver sempre um “mas”. Veja-se o caso de António Guterres, Secretário-Geral da ONU. O seu “mas” já lhe valeu a fúria do Império, com Israel à cabeça e o silêncio cúmplice dos EUA e da UE.

As adversativas devem ocupar um lugar de destaque na retórica discursiva. Os adversários do “mas” conjugam esforços para produzir apenas um discurso pífio. A ideia do “sem mas” é uma aberração intelectual. O “mas” representa a fluidez do pensamento, uma corrente de fluxo ilimitado, consentâneo com a exigência da inteligência humana.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

1 Comment on "A abjuração da conjunção adversativa"

  1. Muito bem pensado – até porque condiz com o que penso e que, de resto, já publiquei. Mas, ora aqui está ele o “mas”, alguns nunca serão demais face a um pensamento que se arrisca, no seu unipolarismo,à tentação dogmática.

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