Alfredo Soares-Ferreira *
A oferta para consultar guias, trajectos e percursos é hoje muito abundante, um dos privilégios do avanço tecnológico. Já fora de moda, quiçá obsoletos, ultrapassados pelo digital, os guias clássicos ocupam um lugar especial nas nossas bibliotecas, com as fotos e descrições que apaixonam, sempre que as consultamos, por nos deliciarem o gosto pelo que é o livro impresso. A Fontana de Trevi será sempre, em qualquer guia que se preze, a foto de uma das maravilhas de Roma.
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O filósofo francês Michel Onfray, fundador da Universidade Popular de Caen, é um apaixonado pela chamada filosofia de bem-estar, que aliás é aplicada naquela instituição, onde não são cobradas taxas e onde se abordam temáticas tão variadas como Economia e Literatura contemporânea, Bioética e Cinema, Psicanálise e Filosofia da Ciência, Jazz e Arquitetura. O Autor escreveu em 2005, uma interessante obra, designada “Teoria da Viagem, uma Poética da Geografia”, onde se questiona sobre a origem do desejo de viajar, bem como do sentimento e das características dos viajantes, em oposição aos enraizados e sedentários. Questiona, a propósito, sobre a razão por que nos sentimos mais nómadas ou mais sedentários e sobre as razões por que somos impelidos para o movimento constante, e para a deslocação, ou se, por outro lado, escolhemos o imobilismo e as raízes. A base de sustentação para a sua teoria assenta numa distinção entre as pessoas, quer na perspectiva social, quer na vertente psicológica.
Na segunda metade do século XVIII o polímata alemão Johann Wolfgang Goethe partiria em viagem e escreveria “Viagem a Itália”, entre 1786 e 1788. Essa viagem fazia parte da decisão de grande parte dos pensadores da época, ao considerar que era um imperativo cultural e estético fazer o chamado “grand tour europeu“, nomeadamente entre Itália, Inglaterra e França, para assim tomar contacto directo com a nascente civilização ocidental. Eram sobretudo jovens europeus, mas não só, como são exemplo os revolucionários da América Latina, Simon Bolívar e José de San Martín.
“Assusta-os o risco e a cultura, o tempo errante e a ousadia de querer ver um pouco além.”
Um dos autores errantes da primeira metade do século passado foi o filósofo da Modernidade, Walter Benjamin, que escreveu sobre as suas viagens, particularmente no período entre 1912 e 1938. Da sua profunda reflexão, ficou a escrita de uma obra, designada “Diários de Viagem”, no qual este pensador sem casa partilhou um sentimento que poderia ser também de um exílio, por vezes forçado por circunstâncias políticas evidentes. Benjamin fabulizou as “imagens do pensamento”, num livro de 1928, “Rua de sentido único”, que dedicou a uma das suas paixões, precisamente Asja Lãcis, actriz, directora de teatro e revolucionária letã, que lhe proporcionou o conhecimento com Bertolt Brecht. É nessa obra que, no entender de João Barrento, na introdução aos “Diários”, Benjamin busca, nos objectos com que se relaciona, a “eterna viagem” do espírito em movimento. E onde faz, entre muitas, uma descrição maravilhosa do Lago Maggiore, entre a Suíça e a Lombardia, uma das pérolas da Europa.
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No nosso País, distinguimos naturalmente Almeida Garret que, em 1846, edita “Viagens na Minha Terra“, uma das obras fundamentais do romantismo português que, para além das curtas viagens entre Santarém e Lisboa, é uma análise empenhada da situação política e social do país, num tempo após a guerra civil entre absolutistas e liberais. Mostra também através da simbologia dos personagens Frei Dinis e Carlos, o conservadorismo velho e absolutista do primeiro e uma certa frescura renovadora e liberal do segundo.
As nossas viagens são por vezes a manifestação da necessidade de um movimento contínuo que nos transporta a lugares, conhecidos ou não, onde construímos um determinado registo, através da partilha constante e do necessário contacto com outras gentes, outros costumes e outras culturas.
Quem apenas consegue ir até ao Pontal carece de legitimidade para se pronunciar sobre viagens, no sentido correcto do termo. Não são viajantes, mas somente sedentários locais, quando muito regionais, sem o rasgo para se aventurarem mais longe que a sua residência e defendem quase sempre um pensamento estreito e atrito à sua condição, conservadora e puritana. Alguns nem português falam correctamente, conjugando os verbos à sua maneira, desastrada e ignorante. Não podemos contar com eles para a viagem, mesmo para a mais curta distância que simbolize um enriquecimento do pensamento. Assusta-os o risco e a cultura, o tempo errante e a ousadia de querer ver um pouco além. Tal como nos ensina Onfray, qualquer viagem começa numa biblioteca ou numa livraria, evoluindo numa poética generalizada de nomes e cores, prezando a informação e o deleite. E, ainda aquela “sensação das cordilheiras” que se pode ler no Poema de Paulo César Pinheiro.
Na viagem, segundo o Autor da “Teoria”, apenas se descobre aquilo que trazemos connosco. Para enriquecer é preciso recorrer a alguma inteligência criativa.
Há quem não tenha, ou não queira ter, tal privilégio.
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