Fechar os olhos: tempos e memórias

Raquel Azevedo *

O filme Fechar os Olhos (2023), dirigido pelo cineasta espanhol Víctor Erice, marca o retorno de um dos mais renomados diretores da cinematografia europeia. Após um hiato de três décadas sem lançar um longa-metragem, Erice apresenta uma obra profundamente reflexiva, que dialoga com temas recorrentes em sua filmografia, como memória, identidade e o papel da arte.

A trama de Fechar os Olhos gira em torno de Miguel Garay, um ator que desapareceu misteriosamente durante a filmagem de seu último trabalho. Décadas após o ocorrido, o mistério de seu desaparecimento começa a ser revisitado por amigos e pessoas que trabalharam com ele, especialmente o diretor Julio Arenas, que tenta entender o que aconteceu e, de certa forma, se reconciliar com o passado. A partir desse ponto de partida, Erice constrói uma narrativa que não se limita ao enredo investigativo, mas que expande para uma reflexão sobre o ato de recordar e como as memórias moldam quem somos.

A estrutura do filme é meticulosa, com um ritmo deliberadamente lento, característica que já se tornou uma marca registrada de Erice. Ele opta por uma abordagem contemplativa, em que o tempo parece suspenso, permitindo que os personagens e o público mergulhem nas nuances emocionais da história. Cada cena é composta com um cuidado extremo, destacando o talento do diretor em criar imagens que comunicam mais do que as palavras. As paisagens desoladas, os rostos marcados pelo tempo e os espaços vazios revelam um universo interior repleto de significados.

Erice faz questão de utilizar o silêncio como ferramenta narrativa, o que reforça a sensação de introspecção e solidão que permeia a história. Os diálogos são económicos, mas cada palavra carrega um peso emocional imenso. O som ambiente, muitas vezes, toma o lugar da trilha sonora, sublinhando o isolamento dos personagens e o abismo que separa suas lembranças da realidade presente.

A memória, tema central do filme, é tratada como algo maleável e incerto. Erice questiona a confiabilidade das lembranças e a forma como elas podem ser distorcidas pelo tempo. O desaparecimento de Miguel é, em certo sentido, uma metáfora para a perda da identidade ao longo dos anos. A busca de Julio por respostas é também uma tentativa de reconstruir um pedaço de sua própria vida que ficou no passado, incompleto e inacabado.

Além disso, Fechar os Olhos aborda o poder do cinema como um meio de imortalizar momentos e pessoas. Ao longo do filme, as imagens de Miguel nas telas antigas e o esforço de Julio para resgatar essas gravações ressaltam o desejo humano de congelar o tempo e preservar o que é efêmero. Nesse sentido, o filme também pode ser visto como uma meditação sobre o próprio ato de filmar e o impacto do cinema na construção da memória coletiva.

A performance do elenco, especialmente do ator principal, é comovente e sutil, capturando a complexidade emocional dos personagens sem recorrer a exageros dramáticos. O uso da câmara, quase como um observador silencioso, reforça a ideia de que estamos assistindo a algo íntimo e pessoal, uma janela para o mundo interior dos personagens.

Em suma, Fechar os Olhos é uma obra cinematográfica densa e profunda, que exige paciência e atenção do espectador. É um filme sobre o peso do passado, sobre como as memórias podem nos definir e, ao mesmo tempo, nos iludir. Víctor Erice, com sua sensibilidade característica, entrega um trabalho que se destaca não apenas pelo retorno de um diretor consagrado, mas também pela riqueza de suas camadas temáticas e visuais. Fechar os Olhos é, sem dúvida, uma obra que ficará marcada na história do cinema pela sua capacidade de transformar o ordinário em algo extraordinário.

[Fechar os Olhos (Cerrar los Ojos), Drama, 169 min, Espanha 2023. Argumento de Víctor Erice e Michel Gaztambide; Melhor filme LEFFEST-Lisboa Film Festival.]

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Raquel Azevedo
* Raquel Azevedo é técnica multimédia, produtora, activista sindical e cinéfila.

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