Alfredo Soares-Ferreira *
A insistência no tema não é despicienda. A prova poderá estar na notícia do passado 17 de Março do New York Times, que publica uma lista com quase 200 palavras banidas pelo governo, com base em directivas internas e emails divulgados por membros da administração Trump. Palavras que passarão a ser censuradas, como “mulheres”, “trans”, “LGBTQ”, “anti-racismo”, “diversidade”, “igualdade”, “discriminação”, “sexo” e “deficiência” e ainda expressões como “apropriação cultural” “pessoa que amamenta” e “discurso de ódio”.

Na ânsia de traduzir em palavras o que pensamos e sentimos, somos levados muitas vezes a um paradoxo. Ou porque a palavra não tem hoje a força que tinha, ou talvez por este tempo não ser propriamente o da palavra. Ou porque surgem novas palavras, mas apesar disso, o seu significado é cada vez menor. O que está a acontecer parece um equívoco, mais declarações e discursos ocos e sem sentido, menos razão na análise e na acção. Mais tempo perdido no espectáculo mediático, menos informação credível. E sempre, menos retórica, no sentido aristotélico clássico, da arte e capacidade de discernir sobre os meios disponíveis de persuasão e de construir argumentos lógicos, emocionais e éticos para o outro. Como tal concepção significa menos respeito pelo cidadão, somos levados a pensar que este tempo não é o da palavra. Porém, não deixa de ser curioso que este seja o período da história da humanidade em que as palavras são acessíveis, abundantes e tão disseminadas. Estaremos porventura a assistir a uma reconfiguração do valor e do lugar da palavra nas nossas sociedades? A questão, assim colocada, remete-nos para as questões dos signos e símbolos na comunicação, ou seja, para a semiótica, embora esta ciência também se debruce sobre sistemas de signos não-linguísticos. O tempo marca aqui uma enorme influência, em termos de velocidade. Vive-se uma cultura do instantâneo, onde tudo precisa ser rápido, as respostas, as reacções, as decisões. A palavra que, por natureza exige tempo para ser elaborada, compreendida e reflectida, parece deslocada nesse contexto. A brevidade das mensagens, a economia dos caracteres, a preferência por sinais e símbolos gráficos em vez de textos elaborados são sintomas dessa aceleração.
O semiólogo e filósofo francês Roland Barthes escreveu, em 1953, “O Grau Zero da Escrita“, onde analisa a escrita como prática histórica e ideológica, questionando a relação entre linguagem, estilo e sociedade. Ao considerar a língua como um “sistema linguístico herdado”, Barthes pretende mostrar que a palavra não é neutra, mas que carrega em si uma construção de poder, que associa à burguesia dominante. Tem a palavra a função soberana de comunicar uma ideia, um projecto, ou apenas serve para preencher espaços? Compete à palavra a douta ciência de encantar um público, ou, antes pelo contrário, é utilizada para arrebanhar? Deve a palavra romper com as formas tradicionais para desafiar estruturas de dominação, como sustenta Barthes? Mesmo sem a preocupação de responder às questões, o poeta e diplomata mexicano Octavio Paz, revela-nos uma visão dual onde “A palavra é ponte e abismo: une e separa, revela e oculta.”. Na sua obra “O Arco e a Lira”, escrita em 1956, Paz procura um sentido para o pensador, como mediador entre o mundo e a palavra. Num sentido simbólico, porventura poético e encorajador, Mia Couto diz-nos, em “Estórias Abensonhadas“, de 1994, que “As palavras são sementes. Plantadas no chão certo, germinam mundos.”
Pode até constituir-se como um espaço de resistência contra a banalização do pensamento e da comunicação.
Como se constata, a palavra está a ser estropiada. Muito embora admitamos que existem palavras comprometidas e comprometedoras, há que “salvar” as palavras que são vítimas de assédio, como por exemplo “liberdade”, “igualdade” e “fraternidade”. Mesmo sabendo que uma palavra como “compromisso” é sempre associada a algo perturbador uma vez que está intimamente ligada à cedência aos poderosos, há que a resgatar, colocando-a na prateleira do “pode ser…”. Reconhecemos que há palavras gastas e usadas, porque cooptadas de forma espúria. Veja-se a asserção “Palavra dada, palavra honrada”, de que alguém abusou e que agora, por força de novo estatuto, se terá “esquecido”, quer da palavra, quer da honra. Ou ainda o termo “povo”, que muitos invocam sem qualquer substância e, diga-se de passagem, sem respeito. Ou finalmente as que, por motivos vários, provocam um efeito de irrisão, que o digam por exemplo, “convergência “, “estabilidade “, “ajustamento”, “consenso alargado” pacto de regime”, “reformas estruturais”. E, também hoje em dia,“democracia”.
Há, contudo, palavras sábias e poderosas, que se devem sobrepor às palavras frouxas e vazias, titubeantes e hesitantes. Há palavras excitantes, possivelmente palavras de ordem que perturbam e que convocam. Tendo ou não o dom da palavra, há autores determinantes a quem prestamos atenção e tributo. Ao usar a asserção “não tenho palavras” expressamos uma admiração superlativa ou de surpresa a um acontecimento ou situação. Finalmente, quando pedimos a palavra, estamos na plenitude do uso do direito de intervir, protestar ou manifestar opinião, sabendo de antemão que a palavra não se pede, mas que se usa de forma natural. Uma coisa é certa: mesmo que a palavra esteja em crise, não significa que tenha perdido importância, valor ou dignidade e pode até constituir-se como um espaço de resistência contra a banalização do pensamento e da comunicação.
Pelas fabulosas estórias de “Outras Inquisições”, obra de 1952, de Jorge Luís Borges perpassam palavras de imenso valor, vigor e coragem. O Autor teria o “atrevimento” de considerar a palavra como um “mapa do infinito”. E se ela está em crise, mas nela cabem todos os tempos, todos os sonhos e esquecimentos, será tempo de a resgatar, ao arrepio da ideia inicial. Só assim voltará a ter o poder para nomear o indizível e equacionar as novas formas de ver e entender o mundo.
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