Por Alfredo Soares-Ferreira *
Na ânsia de se colocar no lugar cimeiro, na crista da onda ou simplesmente em bicos de pés, um sem número de personagens menores brindam-nos diariamente com prosápias e dislates, provavelmente oriundos de uma inquietação existencial de contornos bem definidos. Actuam, de forma visível ou subterrânea, consoante os ambientes e as modas. Deixam-nos quase sempre a imagem de um niilismo vazio e derrotista. Sem querer dar-lhe muita projecção, que objectivamente não merece por lhe faltar qualidade para tal, o actual ministro da Presidência disse, no final do mês de Outubro, que o Partido Socialista quis “acabar o trabalho de reengenharia demográfica e política do país”. O significado real desta asserção radica numa espécie de atitude deliberada de remodelar a sociedade, aplicando políticas destinadas a promover intencionalmente uma recomposição da população. Não sendo um conceito propriamente dito, é mais uma daquelas teses, designadas por teorias da conspiração, em que se pretende substituir a população europeia branca e cristã, por camadas sucessivas de imigrantes com cores e hábitos diferentes do “comum europeu” caucasiano e branco. A propagação destas ideias de substituição que teria ganho alguma forma em finais do século XIX, constitui-se como discurso de movimentos nacionalistas e supremacistas brancos em todo o mundo, incluindo em Portugal, tendo ainda como objectivo a promoção ou imposição de uma visão conservadora e tradicional da sociedade.

Existem hoje alguns paralelos entre esta retórica e a ideologia nazi-fascista dos anos vinte e trinta do século XX. Ao tempo, a grande ameaça eram os judeus, os “parasitas” que estavam a enfraquecer e a corromper a nação alemã por dentro e, por isso, foi “necessário” exterminá-los, aplicando-lhes uma “solução final”. Nunca é demais lembrar a violência nazi-fascista, sobretudo em termos de uma educação e uma pedagogia de verdade, quer dos factos corridos, quer ainda do perigo real que constitui uma ideologia de ódio, destruição e morte. Vale a pela, a propósito, lembrar o ideólogo da extrema-direita o francês Renaud Camus, um filósofo que terá migrado de uma esquerda pouco consistente para posições aberrantes de xenofobia, racismo e declaradamente fascistas, assumidas na sua obra de 2012, “Le Grand Remplacement” (“A Grande Substituição”), em que expõe uma teoria da conspiração segundo a qual a Europa branca e cristã foi invadida e destruída por hordas de imigrantes negros e escuros do norte de África e da África subsariana. Disse ele, em entrevista ao jornal El País, em Agosto e 2019, na sua imensa hipocrisia que “A grande substituição não é uma teoria, é o nome para um fenómeno como a Grande Depressão, a Revolução Francesa e a Primeira Guerra Mundial.” Um outro escritor francês, de seu nome Michel Houellebecq, ajudou à narrativa, em 2015, ao prever a ascensão de Le Pen à presidência sete anos depois, no seu romance político (assim lhe chamou), “Soumission” (“Submissão”).
As principais diferenças entre o tempo corrente e o de há cem anos, são o contexto e a linguagem. Enquanto Hitler falava abertamente em “raça” e “espaço vital“, os políticos da extrema-direita do século XXI usam uma linguagem mais codificada, falando de “identidade“, “cultura” e “substituição populacional“. No entanto, o núcleo ideológico, o medo da mistura, a busca por um inimigo interno e externo, e a crença num destino étnico ameaçado, permanece fundamentalmente o mesmo. Vejamos como aqui se colocam as questões da teoria e da prática. Sendo a teoria da Grande Substituição uma construção ideológica e conspirativa, a prática pode ser as suas consequências no mundo real, as políticas propostas, as acções dos seus apoiantes e o impacto social que produzem. É assim que a extrema-direita actua também no nosso País, agora de uma forma aberta e, com a cumplicidade de um governo perfeitamente identificado com a teoria, assumindo praticamente todas as causas de um partido que está no limite legal da sua existência, por manifestos atropelos e ilegalidades. Desde a primeira hora da sua tomada de posse, o governo do director da Spinumviva tem exercido a sua fúria destruidora, que vai desde a perseguição aos imigrantes ao ataque ao Serviço Nacional de Saúde e aos direitos dos trabalhadores com um pacote laboral simplesmente inceitável. Estas são algumas facetas da prática de uma substituição da realidade, sempre com o outro como inimigo. No caso de um governo em funções, poderia dizer-se com alguma simplicidade, em vez de resolver os problemas do País, assume a guerra onde ninguém descortina luta.
A “Grande Substituição” não abarca somente uma mera teoria inócua. Pretende ser hoje e acaba por configurar um roteiro para a acção, uma prática que começa na linguagem, avança para as propostas políticas e pode culminar, como já aconteceu, em ataques terroristas de uma barbárie anunciada. Não é possível tratar o fenómeno através de um debate legítimo, qualquer tipo de diálogo será manifestamente improlífico. Não se deve porém subestimar a sua natureza, o seu traço distintivo é claro e assumido. Um desafio possível poderá ser comparar duas tipologias de asserção, uma produzida em 2013, pelo já citado Camus e uma outra, do ano corrente, de exaltação dos “valores europeus”, que vem sendo repetida até à exaustão pelos burocratas de Bruxelas. A do primeiro, citada pelo Le Monde, a 23 de Janeiro de 2014: “A Grande Substituição é o choque mais grave que a nossa pátria conheceu desde o início da sua história, pois, se a mudança de povo e de civilização, já tão avançada, for levada até ao fim, a história que continuará não será mais a dela, nem a nossa”. A segunda pode ser muito bem ilustrada por duas sentenças da dita “chefe da diplomacia europeia” Kaja Kallas, uma de 22 de Janeiro e outra de 18 de Junho, reproduzidas pela CNN Portugal: “A Rússia representa uma ameaça existencial à nossa segurança hoje, amanhã e enquanto investirmos pouco na nossa defesa” e “Rússia é ameaça direta à União Europeia e prepara agressão de longo prazo. Para quem não percebeu bem, se não ajudarmos mais a Ucrânia, mais vale começarmos já a aprender russo”
O historiador e cientista político camaronês Achille Mbembe falava no perigo evidente de uma suposta classificação social amigo-inimigo / bom-mau, dicotomia que facilita o desrespeito, estimula o ódio e incita a violência, o que “confecciona” artificialmente uma desumanização. Umberto Eco, já avisava, em 1995, num discurso proferido na Universidade de Columbia, uma palestra intitulada “O Fascismo Eterno“, para a obsessão por conspirações, uma crença contínua em conspirações internas e externas que oprimem o grupo ou a nação.
Os avisos foram feitos a tempo e horas. A normatização deste tipo de comportamentos, atitudes e supostas teorias catastrofistas, bem como a normalização de grupos fascistas e pró-nazis vão dando os resultados que temos visto.
Ainda vamos a tempo de mudar de rumo? A resposta está em cada um de nós, na resistência e em acções necessárias e urgentes.

Este texto, como quase todos que tens publicado, é extremamente clarificador e útil. A ignorância histórica e política que grassa actualmente na sociedade constitui um terreno fácil para a penetração da mentira e fértil para a proliferação de teorias da conspiração.
Obrigada pelo teu esforço informado e lúcido.